domingo, 30 de agosto de 2009

A Bola

Na última sexta-feira, completei duas semanas de trabalho numa escola da Prefeitura Municipal de São Paulo.
Esta rede de educação, aparentemente mais organizada do que aquela outra na qual trabalho e sobre a qual já teci uns comentários quaisquer também nesta Pobre Rima, efetivou recentemente todos os últimos aprovados no concurso realizado em 2007 e, nesta leva, virei funcionária do famigerado Gilberto Kassab.
Embora minha querida colega Marli tenha afirmado que trabalho num tal Dom José, segundo o Oráculo a escola na qual entrei fica no Capão Redondo, Zona Sul do município.
Cumpro ali vinte e três horas semanais de trabalho; três horas de atividades diversas, feito seleção de textos, preparação de aulas e correção das produções textuais da molecada, além de vinte horas de aula, nas quais cubro os professores, da quinta à oitava série do Ensino Fundamental regular, que eventualmente venham a faltar - coisa freqüente, diga-se de passagem.
Um dia desses, faltou a professora de Educação Física, única disciplina na qual, em caso de cobertura, não há acordo: os meninos têm uma energia incontrolável que a gente cansada de tudo insiste em chamar de violência, mas tenho ultimamente, cá pra mim, entendido como força motriz mal empenhada.
A despeito desta espécie de observação particular, enfim, cobrir aulas de Educação Física propondo discussões sobre poética modernista ainda não figura entre minhas maiores habilidades. Por isso, consultei a coordenadora pedagógica acerca da possibilidade de levar uma turma de oitava série até o pátio para que os meninos jogassem bola. Deu certo.
Enquanto uma turminha menos afeita à atividade física jogava Detetive debaixo da escada, desenvolvendo a musculatura ocular, a garotada mais ativa se empenhou num futebolzinho despretensioso, com quatro mochilas lançadas às extremidades da quadra onírica fazendo vez das traves.
Tudo tranqüilo até o momento em que a honesta pelada dos meninos sofreu abrupta interrupção: um deles, numa bica desmedida, lançou a bola ao teto, sustentado por canos metálicos entrelaçados, entre os quais o objeto ficou preso.
Em princípio, nosso pequeno zagueiro sofreu retaliações verbais. Na seqüência, olhares românticos foram lançados ao roliço desejo inalcançável. Depois, aquela que andava esquecida no fundo da gaveta mnemônica da molecada virou o céu contemplado na hora do aperto: o que fazer, professora?
A santa era eu. E eu, justamente naquele minuto mágico tanto reclamado pela classe docente, não fazia idéia do que fazer.
Sou um macaco: dispomos de instrumento?
Um rapaz corre até algum lugar desconhecido e volta munido de vassoura. Nesse ponto, o pessoal do Detetive já largou a brincadeira e a galera da limpeza observa, em olhares claros de reprovação, a bola, a turma, a vassoura e, obviamente, a professora desleixada.
O garoto desenrosca o pente da vassoura e joga quatro, cinco vezes, aquele pedaço de pau pro alto. E eu prevendo um homicídio culposo, um rosto caolho, o desembolso duma grana numa vassoura nova. Os colegas ofereciam, solícitos, sugestões diversas: joga mais alto! Alguém monta no ombro dele! Sobe em cima da mochila! Enrosca o pente na vassoura! Tudo acatado e a bola ali, dona da história, pilantra fazendo pouco caso de todos nós.
Em resumo, passamos cerca de trinta minutos nesse jogo até que uma mesa, um menino, uma mochila, uma vassoura e uma turma duns trinta adolescentes acabassem vencendo a partida àquele dia.
Desde que o sinal tocou, às 11:15 da quinta-feira, até agora, há algo que me encafifa e, provavelmente, me tirará o sono durante uns anos, na melhor das hipóteses: como faço pra meter, em cada aula, ali naquele vão, uma bendita Bola?...

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Memória fotográfica

A Lu, minha colega de trabalho entre as paredes da escola, propôs que desenvolvêssemos durante esse semestre um projeto interdisciplinar com base em fotografias. Nosso aluno fotografaria aquilo que, sob seu ponto de vista, é pertinente a um tema gerador específico. Pra começar a etapa da sensibilização, cada professor do grupo deverá, ao primeiro dia de aula, adiado em virtude da Gripe Suína, expôr uma fotografia nalgum canto da escola.
Hoje vim fuçar meus arquivos fotográficos e descobri que, ao contrário de vocês, eu nunca fui feliz sem que soubesse.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

To be (continued)

Na boca da madrugada, hora do vivo febril, pensei que tivesse, apesar da antivocação do dizer disto, de sistematizar - e em certeza equivoco-me, mas já não há tempo ao arremedo e quase nada - o horror, o maravilhoso horror que me tem causado uma idéia. Idéia fixa, razão pela, ou com, qual Brás Cubas caiu doente e tantos outros mortos foram e hão de ir àquela margem do rio.

sábado, 20 de junho de 2009

Pisou na bola, é gol*

“nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez”
(Paulo Leminski)

Ontem meus alunos estavam loucos para fugir da escola e assistir ao jogo de futebol pela televisão.
Tem gente que gosta de futebol. Minha predileção é pela etimologia.
Provavelmente, vocês sabem o que é etimologia; entretanto, a criatura que digitou essas bem traçadas linhas – Tcharan: EU! - há de se tornar escritora de gabarito, e meus amigos, obviamente, quererão compartilhar a sucessão de letrinhas aqui com toda a sorte de gente. É, portanto, necessário recorrer ao grande Aurélio (sem brincadeira, porque a edição da qual colei o verbete é aquela revista e ampliada – pesada, além de grande)
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etimologia. [Do gr. etymología, pelo lat. etymologia.] S. f. 1. Origem de uma palavra. 2. Parte da gramática que trata da origem das palavras.
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E daí?
Daí fiquei pensando ontem na origem etimológica da expressão “pisar na bola”.
Pisar na bola” é equivalente a dar “tiro pela culatra”, figura muito usada pela minha mãe; fazer “cagada”, dita ultimamente até pelo sujeito com prisão de ventre crônica; dar “mole pra Cojaque”, preferida do Bezerra da Silva. Em resumo, “pisar na bola”, semanticamente, significa cometer um erro.
E quem nunca aprontou disso?
Ali na minha infância, encontrei exemplo: quando eu era criança pequena lá em Barbacena e o Chico Anysio ainda aparecia na Rede Globo, a pena contra quem errava, promulgada pelos professores da escola na qual estudei, era nota em tinta vermelha – maior humilhação.
Por outro lado, na hora do recreio, se eu brigava e não queria olhar nunca mais a cara do colega que não me convidou pra festa de aniversário, ou me chamou de gorda, ou puxou meus cabelos na fila da cantina, ou quebrou a ponta do meu lápis de cor azul, aqueles mesmos juízes – ou professores, que nesse caso dava tudo na mesma – obrigavam a gente a fazer as pazes e se abraçar, dando, ainda por cima, o maior sermão sobre a necessidade de pedir desculpas pelos nossos erros, relevar e perdoar os erros alheios.
Passados anos desde minha experiência escolar, tive notícias dum sujeito formidável, do qual vocês já devem ter ouvido falar, que escreveu o seguinte: “não há vida sem correção, sem retificação”.
Paulo Freire escreveu isso baseado na concepção de que cometer erros é inerente ao ser humano porque aprender é uma capacidade inexorável à nossa espécie e, como afirma a máxima, é errando que se aprende.
Se errando se aprende, acho que errar está entre as atividades mais saudáveis a praticarmos, empatando com os esportes, que, como ensinou uma professora com a qual eu trabalho, além de contribuírem com o bom funcionamento do organismo quando praticados regularmente, são atividades altamente educativas.
Essa aproximação entre erro e esporte, enquanto atividades pedagógicas, deve ter dado origem à tal expressão relativa à pisada na bola: se o Ronaldinho pisasse na bola, é provável que nunca tivesse assinado contrato milionário com a Nike - talvez isso evitasse transtornos como escândalos sobre envolvimento com travestis, mas isso não vem ao caso.
A questão é que “pisar na bola” deve ter surgido como metáfora esportiva, tendo sua origem dentro dum estádio de futebol.
E eu, que, por outro lado, sempre tive aversão à paixão desmedida da gente toda pelo futebol, passei a entender que “pisar na bola”, em sua origem etimológica e, depois, em seu sentido metafórico, é verdadeiramente o real objeto de adoração do público.
Se todos os atletas e seus times tivessem atuação impecável, não teríamos partida porque ninguém se atreveria a ir ao Morumbi ou ligar a tevê para assistir a uma encenação mecânica, sem gol porque os goleiros seriam perfeitos, sem drible porque o meio de campo seria perfeito, sem vitória porque os adversários seriam perfeitos.
Ainda não sou fã de futebol, não uso tinta vermelha contra meus alunos e hoje eu abraçaria o colega que não me convidou pra festa de aniversário, ou me chamou de gorda, ou puxou meus cabelos na fila da cantina, ou quebrou a ponta do meu lápis de cor azul - provavelmente, amarraria antes o cadarço dum tênis dele no do outro pra que caísse de queixo no chão, o que seria minha bruta pisada na bola -, afinal, entendi que todos erramos e por isso viver é muito mais divertido que assistir à aula de português da Carol.
*escrito em 18 de junho e tardiamente publicado em virtude da correria

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Eco além do grito: Il Decameron

"La gioia di vivere che c'era nel Boccaccio proviene dall'ottimismo del Boccaccio. L'ottimismo del Boccaccio era un ottimismo storico (...) nel momento in cui lui viveva, esplodeva quella meravigliosa e grandiosa novità(...): nasceva la Borghesia” (Pier Paolo Pasolini)


Decameron toma forma a partir da descrição duma peste avassaladora, motivo pelo qual sete mulheres e três rapazes procuram refugiar-se numa casa de campo. Ociosos, sem televisão ou baralho, nossos jovens desenvolvem ali a trama de narrativas orais cujo conjunto dá forma à obra prima de Giovanni Boccaccio e se presta tanto a paradigma quanto registro documental do ascendente estrato social em germe ali: a burguesia.
No decorrer de seus cem episódios, Decameron transita entre a tragédia e a comicidade, a perspicácia e o erotismo, remetendo sempre à Florença do início do século XIV assolada pela doença. A narrativa apresenta uma construção hermética, na qual cada um dos jovens conta uma história por noite, durante dez noites.
Se me coubesse classificá-lo, diria que tratamos aqui duma novela – de minha parte, mais por questão de afasia que de gênero - de cunho particularmente didático, na medida em que procura desenvolver temas como a libertinagem e a hipocrisia, remetendo à narrativa moral, ratificando, ainda que muita vez por meio da irreverência, uma afirmação sólida do humanismo.
Me dói, desde a primeira leitura do livro, o ouvido. Além da óbvia intertextualidade entre este Decameron e As mil e uma noites, tenho a impressão – diga lá se discorda! - de escutar eco alto de nuances variadas do Decameron em textos feito O ensaio sobre a cegueira do Saramago e A Peste do Camus.
Pensando, por fim, em referências, vale ainda – e sempre – citar a adaptação cinematográfica homônima de Pasolini, na qual são esmiuçados nove dos cem episódios constantes da obra original.
Curiosamente, o foco da adaptação de Pasolini está nos episódios de caráter libidinoso do Decameron. Dos nove episódios do filme, cinco são, basicamente, contos eróticos, como aquele no qual Musetto, fingindo ser surdo-mudo, se deixa ser seduzido pelas freiras do convento no qual trabalha como jardineiro; ou o episódio de Peronella, que esconde o amante dentro dum jarro solicitado por seu marido e tem a pachorra de mandar ver com o outro enquanto o marido limpa o vaso; o de Caterina, que, após passar a noite com seu namorado, é perdoada pelos pais porque, afinal, Ricardo é um homem de posses; o episódio de Tingoccio e Meuccio, dois amigos completamente libertinos que acreditam que serão punidos após a morte por suas peripécias sexuais e, mais tarde, numa visão, têm a crença abalada a ponto de legitimar nova investida na esfera sexual; e o conto do padre que propõe a um homem transformar sua esposa em égua, ao passo em que, na verdade, manda bala na mulher do sujeito.
Se coube ao Decameron original a classificação na minha estante da narrativa didática, a adaptação de Pasolini parece, à primeira vista, um estandarte do sexo como símbolo da liberdade.
- Como assim, bicho?
- Ah, cara, um lance tipo Sonia Braga nA dama do lotação, saca?
Brincadeira sem graça à parte, verdade é que Pasolini, obviamente, vai além da questão estritamente erótica imediata: talvez possamos interpretar o sexo, as notórias cenas nas quais predominam a nudez e as genitálias, bem como aquelas nas quais a aproximação da lente ressalta sorrisos desdentados – embora derridam os derridentes -, rostos muito caricatos, excrementos humanos e tudo quanto for enumerado ali em âmbito escatológico, como recursos capazes de resgatar o humano no homem.
Possivelmente, a indagação final ("Por que realizar uma obra, se já é tão formoso apenas sonhá-la?") de Giotto, interpretado pelo próprio diretor, ratifique a idéia do resgate. É, ali, metalingüística a inquietação eterna do artista – Pintor/Cineasta.
Entendo que, além da óbvia coincidência onomástica e temática, o Decameron de Giovani Boccaccio e o de Pier Paolo Pasolini apresentam reflexões do ido para o porvir, pelo qual, indubitavelmente, se nutre expectativa mais ou menos otimista.
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Título: Il Decameron
Gênero: Comédia
Duração: 111 minutos
Lançamento: 1971
Roteiro e Direção: Pier Paolo Pasolini
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segunda-feira, 13 de abril de 2009

Terra Infecunda: sobre a saga literária de Santa Bruna Surfistinha no meretrício

Esclareço logo ao desavisado: sou mulher e, a despeito disso, gosto de literatura marginal, de brutalismo e menção ao escatológico.
Nesse lugar literário, pornografia e, sobretudo, pornofonia me agradam porque, feito dente quebrado e cicatriz, excetuando a gente frígida, o sexo humaniza.
Etimologicamente, berram teus músculos – filólogos graduados - ao segundo do orgasmo: viestes do húmus!
Não há epifania mais fecunda, eu acho.
Percebo, entretanto, neste universo erótico – talvez por ignorância de minha parte, falta de acesso ou, realmente, de produção discursiva feminina - a irritante presença hegemônica do homem.
Às mulheres – e, especificamente, às brasileiras -, excetuando umas poucas literatas ilustres, temos reservadas as páginas de revista masculina e folhinhas de borracharia, razão pela qual tive em mais alta conta a prostituta escritora Bruna Surfistinha antes mesmo de ler, em duas horas e meia, a versão digital em PDF, que me fora enviada por correio eletrônico, de seu "Doce veneno do escorpião".
Anticlímax.
Não encontro melhor definição para o livrinho ao qual me refiro.
Nada mais há a ser dito sobre as confissões duma prostituta na pós-adolescência que se mandou da casa dos pais depois de arrancar toda a grana dos velhos para convertê-la em pó, trabalhou em bordel de altíssima rotatividade, não tem papas na língua para descrever, nos mínimos detalhes, os meandros mais íntimos do sexo comercial e, no entanto, utiliza reticências para evitar a escrita por extenso da palavra "CU".
Alguém diz: ‘tá pegando no pé da moça; qual é o problema de usar três pontinhos no próprio orifício anal?
Respondo já: o problema é que puta desse naipe com medo de escrever cu não cola, a menos que não seja alfabetizada. Sendo, é inverossímil.
Cheguei à conclusão de que a Bruna Surfistinha não existe fora da biografia: tenho certeza de que é invenção de algum fã do José de Alencar decidido a dar voz à "Lucíola" após a derrubada das torres gêmeas porque, afinal, nem a Madre Teresa de Calcutá era tão carola.
‘A tomá no c...

terça-feira, 17 de março de 2009

Hipocondria

Ingênua fé na coerência - e numa verdade incorruptível, decorrente dela - me convenceu, desde cedo, a erguer altares e ungir correntes, teorias, partidos e gentes. E - penso agora - é provável que ingenuidade e comodismo floresçam na mesma árvore.
Certas decepções, entre as quais algumas constam desta Pobre Rima, tanto na esfera profissional quanto na político-partidária, foram e têm sido imprescindíveis para a operação particular diária à qual tenho dado seqüência aqui dentro de mim.
Muita pessoa pela qual nutro estima tornou e torna-se, com freqüência, paradigma ao qual devi fidelidade absoluta.
Dentro do absoluto, não há relativismo: se X trabalha pelo bem comum, já não me importa que faça uso de subterfúgios questionáveis. X tem meu apoio incondicional. Se Y tem sólida formação e posicionamento geral com o qual concordo, tem sempre razão. Y é modelo de conduta e opinião.
Parece, hoje, que a gente tem mesmo de ser outro antes de ser eu.
E tudo dói.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Das três horas de Benjamin Button

Sábado, impelida por meu instinto social – expressão equivalente a coerção –, fui, finalmente, assistir ao tal Curioso caso de Benjamin Button.
A longa fila à espera da compra de entrada no Cinemark do Shopping Villa-Lobos, a mim, inclinada a desistir antes de anuir, era razão suficiente para abortar a operação.
Entretanto, na boca do caixa, ao solicitar o bilhete de meia entrada, a atendente, em tom enfático de quem avisa amigo é, ratificou a duração de três horas da fita. Em virtude da razão elevada ao cubo, olhei - em tentativa dum último apelo do condenado ao algoz - a pessoa pela qual estava acompanhada. Não teve jeito.
Enquanto caía a iluminação e a gente toda murmurava, lembrei do comentário publicado pelo A. em seu Meio dedo de prosa a respeito da excessiva extensão do filme, e, procurando sossegar minha alma, recomendei a mim mesma que, se o filme fosse chato, dormisse e pronto.
Imagino desnecessário o relato de impressões e juízo pessoal sobre o Benjamin Button porque a simples descrição do que aconteceu comigo ali, sentada ao centro da sala de cinema número 3, parece bom resumo: do quinto minuto após o início do filme até o quinto minuto anterior ao letreiro final, chorei. Chorei copiosamente de comoção doída, chorei de reconhecimento, chorei de identificação, chorei de tristeza, chorei de alegria, chorei de mais não sei quê. Chorei quando o filme acabou.
Guardo para mim sempre a máxima do “quem fala demais dá bom dia a cavalo”, de modos que, em ocasiões nas quais não entendo do assunto, adoto a tática do silêncio.
Confesso que não li o conto de Scott Fitzgerald, não entendo de narrativa e estética fílmica, nunca dei a mínima para elementos como fotografia e maquiagem, o nome David Fincher era verbete sem descrição na minha enciclopédia mnemônica e, sinceramente, eu só lembrava da Julia Ormond chifrando o Arthur com o Lancelot na Tela Quente. A despeito disso e daquilo, discordo de meu querido A., embora tenha certeza de que ele, ao contrário de mim, entende de cinema, quanto ao filme de Fincher.
De tempos em tempos, corre uma mensagem eletrônica com um poema de autoria atribuída a Charles Chaplin, no qual está escrito, dum jeito bem bonito, que a vida da gente deveria ser ao contrário: tínhamos de nascer idosos reumáticos, atingir a maturidade com o corpo bonito, trocar rugas por sabedoria, morrer na doçura pueril. E é justamente isto o que acontece com Benjamin.
A protagonista do Curioso caso nasce velha e, aos oitenta anos, falece bebê de colo. Apesar de toda circunstância incomum – e, talvez, justamente em virtude de toda circunstância incomum -, Benjamin Button é a mais comum e humana protagonista cinematográfica à qual já assisti.
Aos cinco e aos setenta e cinco anos, Benjamin gosta de ouvir história. Feito eu e você, durante a vida, ele se apaixona e é amado, mas nem sempre; ele se aventura e se resguarda também; ele tem medo nalgumas ocasiões e se joga noutras; erra e acerta; magoa e é ferido; chora e ri; passa por momentos de euforia total e tédio completo; aprende e ensina. Tudo tem seu tempo na vida de Button.
Cada coisa, ali dentro da sala, tem seu tempo: oitenta anos na vida de Benjamin Button duram três horas. Uma filha conhece verdadeiramente sua mãe em três horas. Alguém descobre quem é num período de três horas. A leitura dum diário leva três horas. A agonia no leito de morte é de três horas. A chegada dum furacão demora três horas. A moça da poltrona vizinha toma seu refrigerante em três horas. Uns olhos permanecem grudados na tela por três horas. Eu chorei até desidratar durante três horas.
Do meio-dia às nove da manhã, em relógio no qual os ponteiros correm em sentido anti-horário, são três horas. Do meio-dia às três da tarde, marcadas por ponteiros em sentido horário, perfaz-se três horas, de qualquer maneira.
Três horas tomando cerveja em dia quente com amigos queridos são poucas. Três horas entristecidas no velório dum camarada estimado são muitas.
Não acho que qualquer referência temporal, das recorrentes expressões como “boa noite” ou “tudo tem seu tempo” à caracterização das personagens, tenha sido mera coincidência ali.
A narrativa fantástica do Curioso caso de Benjamin Button leva três horas para contar, de muito jeito curioso, a história do tempo que o tempo tem. A extensão do filme, portanto, é tão necessária quanto consoante plosiva em poema sobre bomba.
Contei, anteriormente, sobre meu pranto ali no cinema e não menti, mas omiti. A verdade é que chorei mais depois, mas, dessa vez, por outra razão: fiquei pensando no que tenho feito eu de todas as minhas três horas.
Acho que nasci velha.
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Título: The Curious Case of Benjamin Button
Gênero: Drama/Fantasia/Romance
Duração: 166 minutos
Lançamento: 2008
Direção: David Fincher
Roteiro: Eric Roth
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quinta-feira, 12 de março de 2009

E digo mais, compadre I

Era como, assim como podia também ser, outra qualquer. Mas, veja bem, mulher outra, que com homem, todo o mundo sabe, sempre tudo diferente dá. Mulher que é bicho pronto e dado, zápite-zúpite, à arrebatação de fazer perder arreio e sair mundo à delícia de mula destrambelhada, e não é?
Pois que então foi tudo às causas disso mesmo. Essa natureza de mulher, causadora de desgraça grande ali. E nem se diz pelas bandas que fosse Tadinha a canhota, se bem que tinha idéia torta mesmo, mas isso, enfim, como eu disse, é da e pra laia delas. A diaba não tinha teres com o Canho nenhum, não.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Da Primeira

Pinta as unhas dos pés com esmalte vermelho encarnado. Nas mãos, dedos longos vestem cores sóbrias e aliança. Noivou e casou sem delongas, em festa de arromba. Prefere as bebidinhas adocicadas. Acarinha palavra, dizendo devagarinho tudo, articuladamente. Acompanha o marido ao estádio. Tem olhos apaixonados, feito míope sem as lentes. Dum talento gastronômico indizível. Seus cabelos são pretos, compridos, sedosos. Maria Bethânia é sua maior comoção. Liga o ar condicionado e, debaixo da macia coberta, dorme bailarina. Quer filhos agora.

terça-feira, 10 de março de 2009

Da Quinta

É ruiva e lê Freud. Não duns cabelos de fogo, mas avermelhados. Interessadíssima em política externa, bebe feito poucas. Não tem animal algum de estimação, mas há sempre flores na casa de paredes brancas. Amarelas. Foi à África Subsaariana a passeio com ex namorado. Gosta de gente. Cansa de gente. São bons seus amigos. Aperta os olhos castanhos dum jeito sincero ao sorrir. Branca, sem vestígio de biquíni. Fode de todos os jeitos e sabe chupar. Fuma eventualmente, tem predileção por charutos e uísques maturados. Estéril.

segunda-feira, 9 de março de 2009

10 dias que abalaram o Mundo

Depois da Net ter proporcionado alguns dias na Sibéria a esta que vos escreve, a Pobre Rima retorna hoje ao trabalho.
Lembranças de Lara a Jivago.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Festa da Democracia*

Moro num edifício de dezesseis andares. Do primeiro ao décimo quinto, temos oito apartamentos de três e dois dormitórios em cada piso. As coberturas ficam no décimo sexto, são apenas quatro e, portanto, maiores que os outros apartamentos do prédio.
A taxa de condomínio - o que representa, financeiramente, metade do meu salário - é proporcional à metragem da propriedade. Se o morador duma unidade residencial de dois ou três dormitórios pagasse o mesmo valor que paga o proprietário duma cobertura, obviamente trataria de arranjar um apartamento desses no topo da edificação.
Vivemos aqui, até o ano retrasado, sob a administração dum síndico desonesto, mas, embora tivéssemos ciência de sua desonestidade, não existia maneira de comprová-la.
O edifício andava sujo, sistema hidráulico e elétrico no bico do corvo, elevadores em péssimo estado, funcionários displicentes, portaria feia.
Nada poderíamos fazer. Uns, porque camaradas ou devedores de favores ao administrador; outros, porque trabalhadores sem tempo para fiscalização. O resto, para evitar dor de cabeça com porcaria, fé na providência divina, no ócio criativo ou pura preguiça.
Todos nós, deste modo, recostávamos nossas cabeças aos nossos travesseiros e dormíamos com este barulho.
Muitos condôminos cogitaram a possibilidade da venda do apartamento, mas nossas casas andavam completamente desvalorizadas devido ao estado do prédio e ao alto índice de inadimplência – já que há sempre gente que vê a maracutaia alheia como razão justa de se esquivar do próprio dever e compromisso.
Se já padecíamos com toda miséria da torre, nosso síndico trambiqueiro, a falta de quem fiscalizasse sua administração e pudesse comprovar sua corrupção, pagamos também esse pato pelos proprietários inadimplentes, com rateios e aumento da taxa condominial.
Àquele último ano de administração, um grupo de moradores, quase ensurdecido, já não conseguia mais fechar os olhos à noite.
Constituído por trabalhadores assalariados, aposentados, profissionais liberais, donas de casa; homens e mulheres; hétero e homossexuais; brancos, pretos e orientais; pós-graduados e pré-silábicos; jovens e idosos; cristãos, candomblistas, judeus, agnósticos, budistas e ateus, este grupo tomou a decisão de usar parte de seus dias, noites ou madrugadas, inclusive aos finais de semana, fiscalizando as contas do prédio.
Contra a antiga administração, conseguiram reunir provas contundentes, denunciaram-na e processaram o sujeito responsável, que fugiu durante a madrugada e do qual o condomínio está prestes a tomar, judicialmente, o apartamento para quitar suas dívidas.
Entre todas essas pessoas que trabalharam pelo lugar onde moram, estava também quem foi eleito e ocupa, atualmente, o cargo de síndico – função que inclui administração da peça orçamentária, contratação, demissão, compra, orientação, cobrança, advertência, sobe e desce, paciência com morador chato - e recebe, por isso, salário equivalente a uma cota condominial.
Na assembléia mensal, pela qual toda proposta de gasto e benfeitoria passa, é composto espontaneamente o conselho de moradores, que colabora com a administração na fiscalização das contas.
O prédio anda limpo e organizado, manutenção em dia, elevadores em ordem, funcionários bem orientados, portaria reformada...
Só falta mesmo é Dona Laura, nossa vizinha de porta bem velhinha que perdeu o marido - sujeito formidável, responsável pela organização do grupo que viria a pôr nossas contas nos eixos - e, apesar de ter decepado parte de seu polegar esquerdo em acidente de trabalho na indústria têxtil onde foi operária dos quinze aos cinqüenta e poucos anos, teve de ir morar na casa da filha porque não conseguia mais pagar condomínio e comprar comida com seus quatrocentos mangos de aposentadoria.
*(valores do serviço, couvert, consumação, cadeiras, mesas, guardanapos, louças, talheres, iluminação e música cobrados à parte)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Marchinha cinzenta

É vento de sal
Vontade de céu
O fusco de sol

[Boca do tubo]

De giro abissal
Rasgado corcel
Desfaz-se lençol

[Surdo gemido]

No corpo, ter sal
Na boca, ter céu
Nos olhos, tersol

[Final da euforia]

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Extrato*

Há rumores de que a Rede Pública Municipal de Ensino na qual eu trabalho anda em vias de estabelecer uma dita “parceria” com a Fundação Bradesco.
O projeto, segundo a boca miúda, deve ser desenvolvido na Primeira Série do Primeiro Ciclo de Ensino Fundamental Regular e prevê utilização de material, capacitação de profissionais e avaliação de resultados desenvolvidas pela Fundação Bancária.
Sou professora de língua portuguesa no Segundo Ciclo da EJA - Educação de Jovens e Adultos, supletivo correspondente ao período da quinta à oitava série no Ensino Regular, e não parece que material, capacitação ou avaliação da Fundação do Banco Bradesco cheguem a esta modalidade naquele município, mas, como educadora, entendo que eu deva arcar, tanto quanto qualquer outro profissional de ensino, cidadão brasileiro ou terráqueo, com os prejuízos da instauração do termo que Paulo Freire, visionário festejado também pelos mentores da associação Banco-Escola supracitada, chamou de Educação Bancária.
Dessa espécie de enredamento das esferas do Ensino Público e da Empresa Privada Bancária decorrem muitas e óbvias constatações sobre os meandros funestos pelos quais a Educação caminha e, ao que tudo indica, continuará caminhando por muitos anos.
Entre a multiplicidade de constatação, escolho aqui a mais ridiculamente óbvia, que recai, em princípio, sobre o educador (e, de maneira alguma, indico este sujeito como vítima da situação. O enxergo, antes, parte responsável pelo sucateamento seu, escolar e social, enquanto figura melindrosa e reticente frente a imposições com as quais não há concordância), o cerceamento de seu maior direito, dever e necessidade enquanto ser humano, trabalhador e mediador no processo de aprendizagem do educando: PENSAR.
Dos bons cursos, da boa literatura e teoria, dos próprios discursos de nossos dirigentes educacionais e, sobretudo, da experiência na sala de aula e fora dela, depreendemos a importância de PENSAR a prática pedagógica.
PENSAR cabe essencialmente ao professor e é fundamental para que planeje e estruture sua aula, pesquise e desenvolva materiais pertinentes e provoque, em conseqüência de sua prática, o PENSAR no educando.
Entra aí o material fornecido pela Fundação do Banco Bradesco, naquele método apostilado conhecido nos cursos pré-vestibulares.
Elaborado pela competente equipe pedagógica do Banco, o material pronto se presta, então, a bússola no oceano pedagógico e já não somos mais náufragos: a turma veleja ao norte, definido pelo braço da responsabilidade social dum Banco. A mesma equipe cuida da capacitação dos professores e avaliação, tanto deles quanto dos alunos.
O educador torna-se, então, nosso intermediário entre apostila e jovem aprendiz. O educando, poupança na qual inculcamos tudo quanto definiu a competente equipe bancária, digo, pedagógica do Bradesco.
Vento em popa e mar de azeite: os resultados das avaliações são ótimos. Ortografia, coerência. Agora, a título de verificação ranheta, solicite ao aluno Nota Dez que explique por que sua família corre o risco de perder sua casa construída em área de manancial. Ih, não deu? Então peça ao professor para responder à mesma pergunta. Chi...
E deu no jornal: o mercado de trabalho padece com a falta de mão de obra especializada. Deu no jornal: paralisação na educação por reajuste salarial. Deu no jornal: governador chama professoras de mal amadas.
O não PENSAR empobrece a escola, esvazia o sentido, desmotiva o educando, desqualifica o educador, enriquece o Banqueiro e consolida a Educação Bancária.
Tive conta no Bradesco. Os juros são altos.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Estampa

Dentro dos teus braços
Sob a chuva de verão
Sempre é carnaval

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

À flor da pele

Abrem-se os botões
Ao toque primaveril
Os seios florescem

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Ensaio sobre o Tempo*

Criança pequena
não quer tabuada:

No oráculo vítreo
a Morte é um numérico
múltiplo de cinco



*(mote sugerido pela Tertúlia Virtual)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Por que eu amo O Pianista


“Eu não sou judeu.
Eu não sou polonês.

Eu sou Pianista.”

Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, a família Szpilman é deportada da Polônia e o único membro a escapar, acidentalmente, do trem que a levaria a um campo de concentração é Wladyslaw, interpretado magistralmente por Adrien Brody, nossa protagonista: O Pianista.
Enclausurado no Gueto de Varsóvia, doente e faminto, o artista passa a levar uma vida errante entre miséria e caos.
O roteiro de R. Harwood, adaptado a partir da obra biográfica homônima do pianista Wladyslaw Szpilman, parte do momento em que, tendo a Alemanha nazista invadido a Polônia, passa a ser decretada uma série de leis de caráter anti-semita.
Ainda que os decretos sejam, de fato, levados à prática, a família Szpilman, abastada e culta, encabeçada pelo pai, acredita que a guerra não durará muito tempo e que a Alemanha há de ser, em breve, derrotada. Desta maneira, submete-se passivamente à humilhação.
A humilhação, aliás, é um dos elementos que parecem nortear todo O Pianista de Roman Polanski. Ela tem início com decretos ridiculamente cretinos, como a proibição aos judeus de andarem nas calçadas de Varsóvia, chegando ao ponto da cena na qual, à frente duma família, à mesa do jantar, oficiais da SS defenestram um senhor numa cadeira de rodas para evitar o trabalho de carregarem-no escada abaixo rumo à morte.
O auge da humilhação, entretanto, não se apresenta no filme por meio destas nuances, que acabam compondo o terrível panorama no qual judeus e poloneses, especificamente, estavam inseridos na Polônia tomada pela Alemanha Nazista, mas na universalização dela, ao cercear o direito humano.
Poucas cenas cinematográficas têm o efeito daquela na qual Szpilman toca, sem tocar, o piano do apartamento onde se esconde.
Ponto fundamental no decorrer do filme é a imagem de Wladyslaw. A personagem, apresentada, em princípio, como sujeito requintado, músico erudito, passa a sofrer grande metamorfose, tornando-se figura esquálida, inerte, animalizada. A humilhação aqui é o que leva à brutalização do homem. Como é possível andar sorrateiramente numa rua tomada por cadáveres ou procurar comida enfiando a cabeça nas latrinas, entre excreção humana? Por outro lado, com que mais se impressionar, afinal, depois de ter sua família conduzida à morte?
Mais interessante ainda é estabelecer um cotejo entre a transformação de Wladyslaw e a transformação de Varsóvia ao longo da obra. Ao passo em que o pianista emagrece, empalidece e é transformado em objeto passivo, os prédios de Varsóvia são colocados abaixo, a cidade fica em ruínas e perde a cor.
Szpilman perde sua família, passa a subsistir como foragido, tem fome e é impedido de exercer sua arte. Ainda assim, ele não demonstra rancor nas três oportunidades em que encontra oficiais nazistas; a primeira, ao ser retirado do trem, e as outras duas são encontros com o oficial que pede para que ele toque piano e implora, já preso, ao último encontro, para Szpilman lembrar-se de ajudá-lo.
O pianista não só não demonstra rancor, mas também se apresenta ao longo do filme como personagem completamente passiva. Ele é retirado do trem, a ele é sugerido que permaneça escondido no apartamento de amigos, é alimentado no apartamento e espera, ao final da guerra, ser encontrado pelos soviéticos.
Mais do que um homem traumatizado pela humilhação e pela perda da família, Wladyslaw Szpilman se presta aqui a símbolo. Polansky poderia ter trazido às telas a história dum ferreiro, bancário, professor ou relojoeiro. Judeu, polonês, cristão ou palestino. Trouxe O Pianista.
O piano, a música e a arte foram as nuances que levaram aquela questão específica, circunscrita pela guerra, à expansão, tomando caráter universal. Ali, a arte é o que faz valer o caráter humano de Wladyslaw. Ele não representa mais um judeu ou um polonês. Segundo a própria personagem, ele é pianista.
É a Arte quem resiste à cidade demolida e ao corpo, que perece gradualmente.
O Pianista, desta maneira, não me parece um filme específico sobre a questão do judeu polonês no Holocausto, mas relativo àquele inominável demasiadamente humano quê.
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Título: Le Pianiste
Gênero: Drama
Duração: 148 minutos
Lançamento: 2002
Direção: Roman Polanski
Roteiro: Ronald Harwood
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P.S.: Segunda-feira, dia 16, minha querida amiga Deborah enviou esta notícia curiosa relacionada ao tema.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Batalha naval*

A toda sorte de garrafais
letras embriagadamente
biquinscritas em frágeis cascos
de papel
Náufragos seríamos
Éramos
Estávamos
De Lapa
De Rio
De Fato
De Porre
De Tudo
(e de sina também).

Não sou porto-seguro,
Sou pirata caolho.
Não és terra à vista,

és poeta, maneta.


*(jan./2003)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Duma cerveja onírica em Münch

Esvaiu-se todo canto
no cantar tempo sombrio

Qualquer dia te escrevo.


A felicidade extermina,
diariamente, seis milhões
de novos poemas.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Lição de Guiar - apontamento

À noite verificamos
fundamental a tração
na oscilação entre o
Vale Florido e o Pico
Rochoso - Dedo de Deus.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Lição de Guiar

Da rodovia cervical ao quebra-mola
todos teus caminhos convergem à acentuada
rampa.

Que a marcha seja lenta e ininterrupta
da planície até o curvo pico,
cume.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Memória do Cárcere

Éramos, enfim, solitários. E enganávamos a nós mesmos, procurando acreditar - por auto-sugestão e implante de provas falsas - que fôssemos os criminosos. A sentença, à qual nos submetemos - porque, antes, réus conscientes - foi comungar uma vida plástica, cheia de tevê, jantar e conta de telefone.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Princesa não ronca

Na história das fadas
O beijo é convite

À emersão do sono

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Canto Oceânico

(a toda criança esperta e adulto que gosta do mar)

Ondulantes e depois, era uma vez de Ilê Ifé, lá na África, um peixe-agulha com ascendência real. Seu nome, dito e desdito, perdeu-se entre nação, onda, continente e cor tanta que a gente, hoje, só a custa de muito esforço chega perto de descobrir. Tristeza porque, como todo mundo sabe, esse tipo de peixe só se aproxima daquele que diz seu nome de verdade.
Sua avó era Olokun, uma velhinha bonita com rosto meio molenga e sorriso fácil. No lugar dos dentes, tinha eram pérolas, daquelas mais amarelas, e uma Estrela do Mar vivinha nos cabelos brancos.
Dona Olô morava num coral cor de rosa e não havia Água-Viva alguma que se metesse a boba de queimá-la porque tudo o que se mexia e bestava parado dentro d’água, da Cachalote ao Pepino, respeitava a mulher. Ela era a Rainha do Mar.
Muito ser do oceano, incluindo a Medusa, que, apesar do nome, às vezes é homem, e o Cavalo-Marinho, que nem homem nem mulher é, era filho de Olokum, mas a Princesa mais famosa desde aquela época é Iemanjá.
Ieiê, mãe de todos os peixes do mundo, era a moça mais linda na Terra, na Água e na Areia da Praia. É certo que tinha rabo de peixe, mas gostava mesmo de vestir uma saia bem rodada, fiada com Alga e carapaça de Mexilhão.
Tinha a pele bem pretinha e uns cabelos muito compridos enfeitados com conchas pequenas de Ostra abrindo e fechando. Além disso, dizem que era cantora e tinha voz capaz de encantar até marinheiro barbudo e bravo com tatuagem de âncora no braço.
De pés juntinhos, na minha última estada em Ilha Grande, um barqueiro sabido vindo lá da Bahia jurou que Iemanjá ainda está viva, mora no Brasil e a gente, em dia ensolarado, fazendo bastante silêncio e prestando muita atenção, pode escutar, perto do mar, a Princesa cantar o nome perdido do seu filho Peixe-Agulha.
Se é verdade, não sei. É bom, de qualquer jeito, prestar atenção em tudo quanto é canto de maré.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Couvert indigesto

Devorei zilhões de livros
Degluti dez mil palavras
Regurgito em litros métrica
Ainda arroto poesia
Mas a rima
Alimentar
Peristal
titica
D
U
O
D
E
N
O
A
B
A
I
X
O

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Devaneio na boca


"Na boca, na boca!" (Manuel Bandeira)

Quero morrer de tiro levado
Tiro bem dado de lança ligeira
Arma certeira, veneno que injeta
Ponta de seta a furar corrente

Quero, depois, que a corrente me leve
Sou destemida, meu bote é de aço
Não enferrujo, não quebro nem rasgo
Naufrago barato no curso do rio

Quero uma vida (depois dessa outra)
Co'a mesma voragem o igual turbilhão
Me deixo fugir, não preciso ser solta
Da cela em que a seta me encarcerou

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Elementar, meu caro Watson

O horizonte, detrás das antenas e betão armado, é segredo capital. Tenho de descer hoje ao mar e desvendar esse mistério.
Até sexta-feira.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Kipá

Anteposto ao homem, o solidéu hebraico
Na hierarquia cósmica da Antigüidade
Ao Deus de Abraão assegurou onipotência

Pela mãe bordado
À hora de dormir
Tarde em Ashkelon

O quepe verde oliva das forças armadas
Sob ar condicionado em gabinete bélico
Laureia diariamente seus deuses modernos

High Tecnology
Always at the time
Made in U.S.A.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Combinação

Ainda que estivesse de volta em semanas, por tristeza tomado, cheio de saudade, implorando perdão - rogar amor é prática feminina e, no ofício de fêmea, podia bem se virar sozinha, não precisava de mais ninguém - decidiu treinar pontaria e, num golpe certeiro, acertar o pé direito em seu entrenádegas.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Máxima

Toda mudez será fustigada.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Vou ali e, já, volto já.

Saio em pequenas férias na roça e é pouco provável que encontre acesso a computador por lá, de sorte que esta Pobre Rima deve retomar suas atividades ali pelo sábado.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Calmaria

Vinho do Porto à aguarrás
sem louça manchada, sem domingo
sem macarronada.

Roleta polaca
e o cartucho vale um dez
em miligramas mal dosadas.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

(mais uma) Da série Ah, a academia!

Eu não tinha pretensão alguma de tecer novamente qualquer espécie de comentário a respeito do vestibular, mas a prova de História, aplicada hoje, trouxe uma questão que me deixou encafifada.
Os caras pediam pra que o vestibulando, um sujeito de, em média, dezessete anos nem bem graduado no Ensino Médio, discorresse acerca das “características do teatro na Grécia antiga”.
Lá na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, nas aulas de Teatro Grego do Professor Torrano e da Adriane, soube da existência de tragediógrafos, comediógrafos e lances desse gênero. Até o final do colegial, eu poderia jurar que Jocasta era, originalmente, personagem de novela global.
Lembrei, lendo a pergunta, da aula inaugural do curso de Letras no ano de 2000, na qual o Professor Alfredo Bosi verteu lágrimas saudosas daquele tempo da Maria Antônia, quando os estudantes adentravam a Universidade de São Paulo compreendendo Latim.
Sacanagem, Fuvest!

domingo, 4 de janeiro de 2009

Da série Ah, a academia!

Duas pendências me deixaram de molho na capital durante este início das férias escolares. A primeira, obviamente, foi a falta de grana; outra, a segunda fase da Fuvest. Presto agora, graduada em Letras, História.
Hoje foi dia da prova de Língua Portuguesa, na qual passei cerca de vinte e oito minutos procurando lembrar qual é o nome do autor de Canção do Exílio. Me vieram à memória as versões do Seno e Cosseno que o Empadinha ensinou no colegial, a do Oswald de Andrade, Antonio Carlos de Brito, Murilo Mendes, Drummond.
O que, em primeiro lugar, fiz ao sair da Escola Politécnica, onde realizei o teste, foi acender um cigarro. Em seguida, liguei pra minha mãe e perguntei se “quem disse que minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá e as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá foi o Gonçalves Dias?”. Meio reticente, respondeu que sim.
Chupa, Fuvest!

sábado, 3 de janeiro de 2009

Remissiva

A gente pega um dinheiro e – não, não é roubo – pega da gaveta e ele nem dá por falta, você vai ver só, porque ele tem mais, você acha que isso aí – você acha? – acha que é a providência toda dele? não, não é, eu garanto – pela minha mãe do céu garanto – te garanto que essa pouca miséria nem faz falta; então a gente pega o dinheiro dele – não se apropria, a gente empresta, eu disse, é um empréstimo – a gente pega – que nem há de fazer tanta falta assim – e daí a gente vai embora – não foge, vai embora – a gente vai pra bem longe – sem fugir – vai pra longe e eu pensei no Amazonas que lá eu tenho uma tia velha – nossa dindinha, você conhece a dindinha? – e dindinha nem abre a boca se a família cria caso por conta disso e – nem ninguém chia, você sabe – ninguém abre a boca; aí a gente vai – você até vai gostar de lá que tem até muito pássaro bonito – e a gente fica lá até o mano se acostumar com essa nossa idéia – logo se acostuma o velho – e depois de aceitar isso – ele logo aceita porque não dá nem pela falta – depois de aceitar a gente volta ou a gente pode ir pro Rio de Janeiro – o que você acha, hein? – a gente vai lá pro Rio de Janeiro e vê o Cristo – eu sempre quis ver o Cristo – e vamos conhecer o Cristo e pular carnaval lá no Rio de Janeiro e – aí é se você quiser – e se você tiver vontade, num dia a gente volta do Rio de Janeiro – depois da gente pular o carnaval e ver Cristo – a gente volta um dia pra você ver suas crianças, mas isso se você faz questão, não é? que depois não quero ainda ouvir que – e isso é uma bruta mentira – não quero depois nem ficar escutando por aí que eu não faço o de tudo pra agradar minha neguinha, e eu – justo eu – e agora – agora a gente já falou demais – até agora não ganhei nem um cheiro – eu que faço só o do teu agrado – e nem ganho um cheiro. Vem cá.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Épico em versos anti-heróicos

Foi que depois de cinco-horas-quase-seis in medias rés levantou-se da cama. A gata havia de estar com fome e o apartamento precisava de faxina. Banheiro. Inferno de urina e imundície até última fresta de espírito. Espelho partido: revés tenso de sete olhos. Bateu a porta. Grunhiu, emperrou. Calcanhares trêmulos e cozinha. Formiga, formiga, e ainda pensou que àquelas horas podia estar longe dali. Ralhou consigo por não sei quê. Coma ervilhas. Abriu lata, cortou dedo, chupou sangue, bebeu da água salgada. Chutou a gata estrupício. Formiga. Formiga. Ligou o rádio e deu cabo na vassoura. Desgraça sem fim. Encera-se o chão e dá-lhe amoníaco. Morram, diabas. Podia, devia e sabia, estar longe dali. Tomou banho, maldisse a vida e voltou pra cama. Lá pelas tantas, seu homem chega.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Panacéia

Contra canto encantado
Esconder nalgum canto
Qualquer

Se amarrar bem no mastro
Do bom marinheiro
Ninguém

Por detrás nós atados
Nós cegos
Pronominais