sábado, 18 de dezembro de 2010

DURA LEX

--Prezados Senhores Fulanos de Tal,
--Vimos solicitar, por meio desta, anulação do documento enviado dia tal, referente à cobrança de tal por suposta irregularidade de tal em virtude das seguintes observações:
--O documento de tal, do qual dispomos desde nosso ingresso ao tal em tal e sobre o qual fomos informados por tal, Fulano de Tal, tratar-se de documentação ainda vigente, não cita tal e tampouco sanção em decorrência de tal.
--O Parágrafo tal do Tal, disposto neste mesmo documento, descreve que “tal”. Da mesma maneira, o tal inciso do Art. tal do Tal dispõe como direito do tal tal: “tal”.
--Entendemos que tal não configura qualquer tal descrito por Tal, bem como situações descritas pelo Tal: tal ou tal. Tanto é que, ao contrário de alguns outros tais circunscritos pelo tal, não há tal algum que indique tal. Temos, no entanto, tal.
--Se houvesse, como percebemos nestes tais após à anterior tal, qualquer meio de tal que expressasse tal, não teríamos tal, em observância à regra.
--Parece ainda necessário, a título de esclarecimento, informá-los de que, em ocasião do recebimento de tal sobre tal, enviada no dia tal do ano corrente, não tivemos, como é possível averiguar confrontando aquele documento, que cita “tal”, a este, sobre “tal”, clareza sobre o objeto de referência com relação à tal: se tal ou tal; devendo isto, portanto, ser disposto com maior clareza ao momento de tal.
--Tendo em vista as observações supracitadas, vimos recorrer aos Senhores, Fulanos de Tal, pela suspensão do documento tal enviado dia tal de tal de tal, referente à tal, ressaltando que, a partir desta data, já informados sobre a possibilidade de reincidência recair não sobre tal, mas sobre tal, e ciência de que aquele tal tem tal, ainda que não exista tal ou tal, responsabilizamo-nos por futuras tais e suas respectivas sanções previstas.
--Certos de vossa compreensão, subscrevemo-nos.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Cordel do Jatobá

Na Escola Jatobá
Eu estudo com vontade
E um dia eu chego lá
Pra fazer a faculdade

E depois da faculdade?
Não há limite para mim
Eu vou ter mais liberdade
Pra ganhar o meu dim-dim

Depois de ganhar dim-dim
Vou comprar o meu carrão
Comprar uma mansão pra mim
E também um avião

Vou pegar meu avião
Viajar para o Sertão
E vou levar o João
Pra colher muito feijão

O João fez faculdade
Não foi pra colher feijão
Foi pra vir para a cidade
E virar um cidadão

O Deassis diz que feijão
Não é uma boa rima
Pra rimar com cidadão
Vou chamar a minha prima

Laurilene não é prima
É, sim, cunhada da Rita
Moça que eu tenho estima
É colega bem bonita

E por falar em beleza
Vamos falar já da Clô
Que eu digo, com certeza,
Até parece uma flor

Essa flor será regada
Com carinho e com amor
É uma professora amada
Que trabalha com fervor

Tem um professor careca
Vinicius é o seu nome
Será que usa cueca
Ou só tem de homem o nome?

Isso é uma brincadeira!
É história inventada
Professor é nossa bandeira
Nos desculpe a piada

Ele é um show de bola
Até parece um artista
Será que toca viola
Ou será um humorista?

Wilson é inteligente
E tem grande competência
Ele brinca com a gente
E da Arte tem ciência

Já o maestro de espanhol
É gordinho e inteligente
Ao contrário da Carol,
Fala língua diferente

Edson é o professor
Dessa língua estrangeira
Ele ensina com valor
Não fica de brincadeira

É bonita e inteligente
Nós vamos da Lu falar
E dá aula para a gente
Na Escola Jatobá

Não esquecendo da Jane
Que é uma grande educadora
Essa nunca entra em pane
Ela é uma vencedora

São pessoas importantes
Elas duas se dão bem
Suas aulas são interessantes
Seus alunos vão além

Vamos falar da menina
Das Ciências Naturais
Ela é uma coisa fina
Falando dos minerais

Edilaine é o nome dela
É uma moça bem sincera
E também é muito bela
Ela veio de outra esfera

A Marli é fundamental
E muito amada por nós
Ela é intelectual
Que nunca nos deixa sós

Indígena é o sangue dela
E o sangue nas veias corre
Uma grande guerreira é ela
De uma tribo que não morre

Eu vou contar pra vocês
Algo que aconteceu
A profª de português
Ela desapareceu

Carol é muito querida
Também amada por nós
Alegre, cheia de vida
Ela voltou logo após


(Alunas e alunos da EJA - Termo III - na E.M. Jatobá, Embu das Artes, em 2009)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Bodas de Pérola

- Tomei uma sopa.
- Na faculdade?
- É. Eles têm uma sopa grande.
- Sopa de quê?
- Canja.
- Faz tempo que a gente não toma uma canja.
- Lembra de quando a gente fazia canja?
- É. Vinha todo mundo...
- E tinha aquele seu amigo que bebia.
- Moacir. Bebia e tomava canja.
- Aquele bebia!
- Que ano?
- 81, eu acho.
- 81.
- Não lembro se a Carol já tinha nascido.
- Quando Mitterrand foi eleito na França.
-Mitterrand foi presidente da França até que ano?
- Não lembro. (...) era do partido socialista.
- A Net tá ruim.
- Quê?
- A Net.
- Iche. Por quê?
- Vão consertar um cabo. Avisaram.
- Mas não está pegando a Internet?
- Parece que não.
- E a mulher gostou do presente que você deu pra ela?
- Gostou. Tá frio na rua.
- Tá?
- Quer um chocolate?

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

GENTE PORRETA UNIDA NUMA IDEIA SÓ

Dedicamos esse cordel
Aos nossos inspiradores
Os da terra e os do céu
E aos nossos professores


O jardim estava feio
Uma feiúra de dar dó
Mas a turma da EJA veio
Se uniu numa força só

Quando andava no jardim,
Eu olhava e não gostava
As plantas murchas no capim
Dança da poda começava

A poda é necessária
Para a planta renovar
Tem que ter adubo e área
Para o jardim respirar

A professora Clotildes
É uma moça inteligente
Veio com seu jeito humilde
Para orientar a gente

Os alunos e os professores
Juntos num encanto só
Plantaram, regaram as flores
Uma belezura só

Começamos a limpeza
Precisamos ajudar
Mulheres com sua beleza
Os homens pra reclamar

Junta pau, junta madeira
Para o lixeiro levar
Varre pra tirar a poeira
E o almoço começar

Na cozinha a Cristina
Só pensava em rebolar
“Lu”, gritou logo a menina
“O molho vai acabar”!

Macarrão estava pronto
Molho branco e avermelhado
Era meio-dia em ponto
Todo mundo enfileirado

Crianças foram servidas
E os adultos apressados
Enche o prato de comida
Pra deixar o bucho inchado

Na hora de lavar prato
Procurava e não achava
A Carol gritou no ato
E ela mesmo não lavava

Vinicius chegou atrasado
Com desculpa esfarrapada
Eita, homem azarado
No carro deu uma porrada

Na hora do nosso almoço
Desfalque, teve um só
Wilson roeu o osso
E acabou virando pó

Já que falamos em pó
Nesse dia do jardim
Cafezinho bom que só
Fez o Edson Quindim

Edilaine, professorinha
Com seu jeitinho inocente
Com sua história de bruxinha
Surpreendeu muita gente

Jane não trouxe peteca
Trouxe os filhos pra ajudar
Mas a criançada sapeca
Só queria era brincar

Brincadeira divertida
O mosaico sendo feito
A lajota foi moída
Trabalho saiu perfeito

Zé Cabral e Edmilson
Mexiam a argamassa
Sebastião e Wilson
Sentados fazendo graça

Deu um trabalhão danado
Quis sair em Disparada
Que trabalho complicado
Manter a voz afinada

Quando chega na “boiada”
O Adão se atrapalha
Todos caem na gargalhada
Jane e Lu corrigem a falha

Jane com suas invenções
Os alunos enlouqueceu
Com muitos, vários puxões
O teatro aconteceu

Já passava lá das sete
Professores não chegaram
Célia gritou para Bete
“Vê se todos assinaram”!

A turma foi dividida
Termo um, dois, sala oito
E a bagunça reunida
Aribaldo fica afoito

Dia da feira cultural
O mundo fantasiado
Foice, marmita e pau,
E o coral fica afinado

No teatro lá na feira
Todo mundo arrumado
Jane organizou a fileira
Uns de branco, outros drogados

Depois da apresentação
Todo mundo emocionado
Carol chorava no chão
Lázara do outro lado

E esse é o final do cordel
Dos alunos da sala nove
O povo não vai pro céu
Muito menos se comove

Se você não acreditou
Na força da nossa turma
Agora a gente já editou
Você lê, relaxe e durma!


(Alunos e alunas da EJA - Termo III - na E.M. Elza Marreiro Medina, em Embu das Artes, no ano de 2007)

sábado, 14 de agosto de 2010

Par

O Tempo, que um só é,
só um intento a seus filhos prometeu:
engolir.

E qual artimanha contra irrevogável pai?

Sê dois, isso acontece (também pode).


Assim a Natureza escapa à Morte.

sábado, 24 de julho de 2010

Recordações duma impossível Paraíba

Despertar ao canto da ninfa
(míope, nua, tambabesca) e cão vadio enluarado
Com preguiça de acordar;
Provar dum café amargo
Quem passou foi Nazaré.

Dia de céu.

Irromper dura batucada
Sobre mochos e atabaques
– entre o couro e a madeira mora o sol.

Sono.
Requebrar doce da morena.
Sururu contra a ressaca.
Serra Limpa (natural).

Pra comer, ovo cozido,
A vestir, algodão cru.

Lua cheia: o mar arrebenta no teu sovaco.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Comunicação

(Para o coprófago R., com figos)

Só as coisas encantam
(mesas, cadeiras, parafusos, relógios)
Como as coisas.

Sobre um velho sofá de couro na sala de espera do ginecologista
Salivei

Vontade de morder o sofá de couro do ginecologista
E os olhos

Enojaram o sofá de couro
E o monte de doença venérea que já ali sentara seus fluidos fétidos

Quis comer o sofá

Feito bicho vivo

Coisa. Só.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Dadá

C. diz:
--bicho, como esse Carlos Vereza escreve mal!
D. diz:
--Carlos Vereza?
--Escrevendo antidrogas?
C. diz:
--é impressionante. Eu tenho um preconceito contra (ou favorável a) esses atores mais velhos, sabe? Penso que todos são leitores ávidos, bons escritores.
D. diz:
--Ah, são sim.
--Só na sua cabeça nostálgica.
C. diz:
--olha o primeiro enunciado num post do blog do cara: "Volto à equação: O Irã,possue foguetes de médio e longo alcance."
D. diz:
--Show de horrores.
--Isso é sério?
C. diz:
--isso É sério.
--aí, num outro post, ele recomenda que os petistas leiam Hegel.
--ele leu Hegel?

-
--Ele sabe ler?

quarta-feira, 14 de abril de 2010

13-14/04/10

---Um banheiro público de paredes brancas e limpas, com dois ou três lavatórios e, possivelmente, espelhos. Eu ali ao centro vejo, anteposta e de costas, a uma das pias, uma mulher vestida de preto, um pouco gorda, a minha esquerda. Penso que seja negra. À direita, Laura escova os dentes, acho. Jogo uma bolinha de papel higiênico no ralo da pia à esquerda. A mulher de preto deve ficar brava. Não lembro por que jogo o papel ou se recolho. Ela sai do banheiro. Estou à pia esquerda, antes ocupada pela mulher de preto. Imagino que eu escove os dentes agora. Laura diz alguma coisa; talvez me aconselhe. Ela sai do banheiro. Não tenho certeza.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Oxímoro

---Uma professora com a qual eu trabalho contou, chateada, que está feliz por ter engravidado:
---- Nunca quis filhos. Meu namorado está desempregado. Tenho horror a criança. Não tenho casa. Odeio meu trabalho. A Secretaria Municipal de Educação publicou uma portaria que proíbe a entrada de gestantes em sala de aula, de modos que lerei, a partir de hoje, Em Busca do Tempo Perdido.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Whatever Works

---- oi... quer ir ao cinema comigo (rosto com espinhas e pernas trêmulas, talvez aparelho nos dentes e boletim amassado ao fundo da mochila)? é que... bem, (tomado de coragem, tanta que o rosto cora e quase têm combustão espontânea três das maiores espinhas) vai passar o filme do Woody Allen, e daí que... (nova erupção cutânea)... que eu gostaria de ver contigo. (respira entre o aliviado e o destruído: muita endorfina)
---- (Chiclete na boca, olhar vago. Pára de mascar a goma, abre o sorriso pra um lado só, constrangida:) Tenho prova de inglês amanhã.
---- (chuta uma lata imaginária - e também o movimento de chutar é imaginário, mas, ainda assim, o chute fora forte)... é... eu sei... não, não... não sei... é que... bem, é... eu entendo... (imbecil, não sabe ainda improvisar de modo arrasador).
-
(só o imbecil do autor dele é que acha que sabe fazer isso... mais jovem que o adolescente!)
-
---- Então tá. A gente se vê.
---- é... olha, mas e depois da prova? ou no dia seguinte, sei lá... (o tolo apela, está simbolicamente de joelhos... e logo descobrirá que essa é uma condição simbólica comum diante de mulheres; se descobrir cedo, se cura, mas deve ser, como a maioria, mais um condenado)
---- No dia seguinte, tem a de geografia.
---- (ele xinga pela primeira vez de modo quase audível, mas segura a onda num pigarro) tá... geografia é fogo mesmo... (um beijo pra quem acertar que tipo de amarelo é o de seu sorriso patético) o filme ainda não saiu... de repente, dá tempo de cair numa semana sem provas... mas seria legal se... sei lá, a gente já combinasse antes... pra, pra, sei lá, pra já saber quando ir, né?
-
(ele sabe que só falou merda)
-
---- Olha... (e olha com o rabo do olho a vizinhança, pra ver quem passa) por que você não me liga pra combinar?
---- (cincoentas copacabanas de fogos de artifício!, ele sabe que não pode dar bandeira, mas o rosto já, babacamente, o entregou)... pô... legal... é, a gente se liga, sim... quer dizer, te ligo, sim! tem caneta? não, peraí... (já apresenta afobamentos típicos de cachorro quando revê o dono) eu acho que tenho aqui na mochila!... (e fica remexendo aquele antro de papéis amassados, encontra uma caneta)... é, pode dizer o número!
---- É... cincossetemeiassetecinconovedoisdois. Preciso ir.
---- tá... (e ele pensa, pela primeira vez, em metafísica: por que o tempo é inexorável se meu espírito ganha âncora nessas horas e trava tudo?)
-
(mas, no fundo, só vai pensar nisso, desse jeito, cinco anos depois)
-
---- Então, tchau.
---- ei, calma...
---- Fala.
---- é... poxa, nem se despede e já vai embora assim (não, ele não está falando isso. por dentro, o superego joga uma bacia de óleo escaldante no seu baço)...
---- Eu preciso ir mesmo. Combinei de estudar com a Mari.
-
(derreteu... é magma puro por dentro)
(uma parte dele, a mais besta, tem orgulho)
-
---- Se você quiser, vamos andando juntos.
---- tá!
---- Aí você vai falando. Porque tô com pressa mesmo.
---- (de novo, canino babão) eu?... é... a Mari mora longe?
---- Umas cinco quadras. Olha, se não quiser ir, tudo bem. Eu ando mais rápido sozinha.
---- (desta vez, xinga de filha da puta, mas é interno mesmo. e começa a reconhecer-se humilhado - enfim! - mas anda ao seu lado)... eu também ando rápido... é... (bufa um cadinho, ela anda rápido mesmo)... você já viu muitos filmes do Woody?
---- Não. Vi poucos. Por quê? Você é fã?... Esse cara comeu a própria enteada!
---- (ele, desta vez, não se confunde, mas tem medo do que vai dizer... vai dizer e diz)... é, mas eles se apaixonaram! eu acho que, porque se apaixonaram, é justo, quero dizer, cê entende (bobo, um dia aprenderá que, nessa história, o gostoso está mais no delito do que no amor - do delito nasce o amor)! mas não sou fã, não... só gosto muito.
---- É, talvez você tenha razão... eu adoro arrosapurpuradocairo. Já vi um monte de vezes.
---- um monte de vezes? (ele começa a desconfiar dela... inclusive, leva um susto: ela gostou do que ele disse!... acho que daria merda... recupera o amor bobo) legal...!... é... gosta de Tudo que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar? é legal também! (ele sabe que está exagerando no legal... mas é foda, tão difícil falar, porra...)
---- Gosto bastante. Tenho esse também.
---- (caramba! ele quica por dentro!)... é mesmo?! pô, que maneiro! (enfim, saiu do legal, mas voltou ao cachorro babão)... cara, eu nunca conheci uma menina que gostasse tanto assim dele!
---- Minhas amigas acham bobo...
---- mas você gosta, né?
---- mas... é. Eu acho legal, como você diz. Legal.
---- (ela percebeu!... que merda!... ele não sabe onde está sua parte derretida, queria se juntar a ela)... é... legal mesmo... maneiro... você está parando o passo, é aqui? mas achei que fosse mais pra lá e... (o radar dele se confunde)
---- É aqui.
---- ah... (coração, que bateria seria? Mangueira, Vila Isabel? ele jamais descobrirá...) foi bem leg... bem l... bem interessante te acompanhar... deu pra descobrir essas coisas do Woody... gostei!
---- Tá... então a gente se fala amanhã.
---- tá! (amanhã? ele ouviu amanhã?... mas que babaca, isso é só expressão... amanhã?!)... então, tá... a gente se fala...
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----(num meio sorriso, entra no prédio da amiga; ao elevador, encosta na parede metálica e escorre, sentada, até derreter no chão. no rosto, sob o fichário, um sorriso largo assim)
----(ele fica olhando e segue parado... queria ter beijado, queria ter sido mais eloquente, queria ser Ramsés, queria o zaralho e mais... no final, ficou o sorriso. e ele, enfim, entendeu que nem adianta tentar... desde então, estava lascado - jegue mate, xeque marte)
-
---Ser adolescente é bom porque garante inveja às outra faixas etárias: anteriores e todas as mil posteriores.
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© Editora Quatro Mãos, incluindo, sobretudo, as habilidosas direita e esquerda de F. Eugênio dos Santos Silva, em janeiro de 2010

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Soneto do irremediável

Disposto ao sacrifício expiatório,
Ao largo da efeméride, o suspiro
Do arcanjo sem lugar ao oratório
É canto sobre o qual ainda me estiro.

A pena, em qual gesto tão simplório,
Suspende-se ondulante ao papiro
E, acato ao uso do peremptório,
Preparo, aponto, fogo – eu atiro!

Não vão, entretanto, já suficientes
Detrás da mesa, tinta e evocação
Se pólvora maior se me abrasa

O ar e em espiralo inconsciente
Sou anjo e eu, cuja dita canção
Aleija mais que o farfalhar da asa...

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Oásis

Do deserto, os ossos:
Areia
Pedra
Sal.

Na charneca, o beduíno sonha azul.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Carla e Michel

"Carla, come ti amo
questa canzone parla italiano
Carla, come ti amo..."
(M. Simioni)

Há poema aliança de noivado desfeito:

Um dente,
uma pulseira,
ou anel de casamento.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Nunca li Julio Cortázar

---Eu disse nunca li Julio Cortázar e - porque sou dada à invencionice, pensei – a gente se apiedou em muxoxos e recomendações variadas.
---Fazem assim e eu fico indignada, com cara de natureza morta. Sinto-me profundamente atingida nesses rodeios literários nos quais citam Ibsen ou Joyce ou qualquer autor que figure entre os malditos clássicos deles sobre os quais eu ainda não tenha passado meus olhos por preguiça ou pura incompetência. Antes falassem em futebol.
---Acontece que ganhei na última semana uns créditos na Livraria Cultura, que troquei por um livro do García Márquez – ainda o Projeto Chapolim em Cartagena das Índias - e o “Divertimento”, do bendito Cortázar, embora me tivessem recomendado entusiasticamente seu Jogo da Amarelinha – que me custaria o triplo do preço.
---O livro é experimental, é lírico. Engraçado, às vezes.
---Tive impressão, ontem à noite, de ter lido Oswald de Andrade Pubescente.
---Divertimento.
---E nunca li Julio Cortázar.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Da solidão

---Em ritmo de férias, ontem terminei de ler “Sinto-me só”, de Karl Taro Greenfeld, jornalista nipo-norteamericano aparentemente inexpressivo sobre o qual nunca tive notícias.
---Greenfeld apresenta aqui um relato autobiográfico da vida familiar, desde os anos 60 até hoje, em torno de seu irmão mais novo, Noah, um autista de nível severo, ou baixa funcionalidade, conforme descreve o jornalista.
---Embora obviamente não tenhamos em mãos um primor literário, tenho três razões para indicar a boa leitura de “Sinto-me só”:
---Em primeiro lugar, o irmão mais velho de Noah procurou permear toda sua história por informações interessantes e curiosidades sobre pesquisas e métodos relacionados ao autismo em áreas diversas, como a psicologia e a genética. Foi descoberta para mim, por exemplo, a história de que Bruno Bettelheim, exilado nos Estados Unidos da América do Norte ao fim da Segunda Guerra Mundial, inventara um currículo primoroso - e falso - sobre o qual os estadunidenses babaram durante décadas, ou que a teoria de Skinner, relacionada ao condicionamento operante – ou adestramento -, estivesse ainda em voga no que tange a educação de autistas. Ao final do livro, estão incluídas entre a bibliografia as fontes destas informações, às quais deverei recorrer tão logo diminua a pilha de livros na minha cabeceira.
---Não bastassem as informações teóricas, em seu livro, Greenfeld procurou relatar a realidade prática da vida cotidiana de autistas como seu irmão e demais deficientes em instituições públicas de atendimento – ou aquilo que chamaríamos, na melhor das hipóteses, assim – a estas pessoas. Há senhores ali abandonados à própria sorte. Gente violentada, surrada, sem família, sem mecanismo algum de linguagem pelo qual seja capaz de se comunicar. É um soco no estômago de quem, feito eu, leva uma vidinha perfeita e se sente à vontade para criticar os pais cansados de Noah, que não encontraram outra alternativa senão a de internar seu filho num lugar de pesadelo sem fim. Razão suficiente para afirmar que “Sinto-me só” não é nada mau.
---Ao fim – e, se há alguma beleza literária na obra de Greenfeld, ela deve residir justamente neste ponto -, há a catarse, último motivo pelo qual indico a leitura.
---Por meio dum dispositivo literário barato, o narrador nos leva a padecer de sua própria angústia. De repente, somos convidados a compartilhar e fazer projeções otimistas sobre o futuro obscuro de alguém com profundo comprometimento mental.
---Sinta-se só.