quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Whatever Works

---- oi... quer ir ao cinema comigo (rosto com espinhas e pernas trêmulas, talvez aparelho nos dentes e boletim amassado ao fundo da mochila)? é que... bem, (tomado de coragem, tanta que o rosto cora e quase têm combustão espontânea três das maiores espinhas) vai passar o filme do Woody Allen, e daí que... (nova erupção cutânea)... que eu gostaria de ver contigo. (respira entre o aliviado e o destruído: muita endorfina)
---- (Chiclete na boca, olhar vago. Pára de mascar a goma, abre o sorriso pra um lado só, constrangida:) Tenho prova de inglês amanhã.
---- (chuta uma lata imaginária - e também o movimento de chutar é imaginário, mas, ainda assim, o chute fora forte)... é... eu sei... não, não... não sei... é que... bem, é... eu entendo... (imbecil, não sabe ainda improvisar de modo arrasador).
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(só o imbecil do autor dele é que acha que sabe fazer isso... mais jovem que o adolescente!)
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---- Então tá. A gente se vê.
---- é... olha, mas e depois da prova? ou no dia seguinte, sei lá... (o tolo apela, está simbolicamente de joelhos... e logo descobrirá que essa é uma condição simbólica comum diante de mulheres; se descobrir cedo, se cura, mas deve ser, como a maioria, mais um condenado)
---- No dia seguinte, tem a de geografia.
---- (ele xinga pela primeira vez de modo quase audível, mas segura a onda num pigarro) tá... geografia é fogo mesmo... (um beijo pra quem acertar que tipo de amarelo é o de seu sorriso patético) o filme ainda não saiu... de repente, dá tempo de cair numa semana sem provas... mas seria legal se... sei lá, a gente já combinasse antes... pra, pra, sei lá, pra já saber quando ir, né?
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(ele sabe que só falou merda)
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---- Olha... (e olha com o rabo do olho a vizinhança, pra ver quem passa) por que você não me liga pra combinar?
---- (cincoentas copacabanas de fogos de artifício!, ele sabe que não pode dar bandeira, mas o rosto já, babacamente, o entregou)... pô... legal... é, a gente se liga, sim... quer dizer, te ligo, sim! tem caneta? não, peraí... (já apresenta afobamentos típicos de cachorro quando revê o dono) eu acho que tenho aqui na mochila!... (e fica remexendo aquele antro de papéis amassados, encontra uma caneta)... é, pode dizer o número!
---- É... cincossetemeiassetecinconovedoisdois. Preciso ir.
---- tá... (e ele pensa, pela primeira vez, em metafísica: por que o tempo é inexorável se meu espírito ganha âncora nessas horas e trava tudo?)
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(mas, no fundo, só vai pensar nisso, desse jeito, cinco anos depois)
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---- Então, tchau.
---- ei, calma...
---- Fala.
---- é... poxa, nem se despede e já vai embora assim (não, ele não está falando isso. por dentro, o superego joga uma bacia de óleo escaldante no seu baço)...
---- Eu preciso ir mesmo. Combinei de estudar com a Mari.
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(derreteu... é magma puro por dentro)
(uma parte dele, a mais besta, tem orgulho)
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---- Se você quiser, vamos andando juntos.
---- tá!
---- Aí você vai falando. Porque tô com pressa mesmo.
---- (de novo, canino babão) eu?... é... a Mari mora longe?
---- Umas cinco quadras. Olha, se não quiser ir, tudo bem. Eu ando mais rápido sozinha.
---- (desta vez, xinga de filha da puta, mas é interno mesmo. e começa a reconhecer-se humilhado - enfim! - mas anda ao seu lado)... eu também ando rápido... é... (bufa um cadinho, ela anda rápido mesmo)... você já viu muitos filmes do Woody?
---- Não. Vi poucos. Por quê? Você é fã?... Esse cara comeu a própria enteada!
---- (ele, desta vez, não se confunde, mas tem medo do que vai dizer... vai dizer e diz)... é, mas eles se apaixonaram! eu acho que, porque se apaixonaram, é justo, quero dizer, cê entende (bobo, um dia aprenderá que, nessa história, o gostoso está mais no delito do que no amor - do delito nasce o amor)! mas não sou fã, não... só gosto muito.
---- É, talvez você tenha razão... eu adoro arrosapurpuradocairo. Já vi um monte de vezes.
---- um monte de vezes? (ele começa a desconfiar dela... inclusive, leva um susto: ela gostou do que ele disse!... acho que daria merda... recupera o amor bobo) legal...!... é... gosta de Tudo que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar? é legal também! (ele sabe que está exagerando no legal... mas é foda, tão difícil falar, porra...)
---- Gosto bastante. Tenho esse também.
---- (caramba! ele quica por dentro!)... é mesmo?! pô, que maneiro! (enfim, saiu do legal, mas voltou ao cachorro babão)... cara, eu nunca conheci uma menina que gostasse tanto assim dele!
---- Minhas amigas acham bobo...
---- mas você gosta, né?
---- mas... é. Eu acho legal, como você diz. Legal.
---- (ela percebeu!... que merda!... ele não sabe onde está sua parte derretida, queria se juntar a ela)... é... legal mesmo... maneiro... você está parando o passo, é aqui? mas achei que fosse mais pra lá e... (o radar dele se confunde)
---- É aqui.
---- ah... (coração, que bateria seria? Mangueira, Vila Isabel? ele jamais descobrirá...) foi bem leg... bem l... bem interessante te acompanhar... deu pra descobrir essas coisas do Woody... gostei!
---- Tá... então a gente se fala amanhã.
---- tá! (amanhã? ele ouviu amanhã?... mas que babaca, isso é só expressão... amanhã?!)... então, tá... a gente se fala...
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----(num meio sorriso, entra no prédio da amiga; ao elevador, encosta na parede metálica e escorre, sentada, até derreter no chão. no rosto, sob o fichário, um sorriso largo assim)
----(ele fica olhando e segue parado... queria ter beijado, queria ter sido mais eloquente, queria ser Ramsés, queria o zaralho e mais... no final, ficou o sorriso. e ele, enfim, entendeu que nem adianta tentar... desde então, estava lascado - jegue mate, xeque marte)
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---Ser adolescente é bom porque garante inveja às outra faixas etárias: anteriores e todas as mil posteriores.
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© Editora Quatro Mãos, incluindo, sobretudo, as habilidosas direita e esquerda de F. Eugênio dos Santos Silva, em janeiro de 2010

4 comentários:

  1. Ser jovem é uma felicidade tão intensa que só é percebida quando a juventude passou...

    Beijos,
    Jorge

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  2. Nossa que saudade da minha adolescência, eu era como o super-homem, destemido e corajoso. Nada acontecia comigo. Agora fiquei assim, levei um choque de realidade e vi que a vida é mais do que uma ejaculação precoce.

    Beijos
    Guilherme

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  3. Amei as copacabanas. Esse lance de ficar com cara de tacho não é privilégio de adolescente não. Acho que eu fiquei velha! Encontro respostas ótimas pr'as situações constrangedoras 5 quadras depois. Mas tá muito legal a crônica!! Você expressa o sentimento das pessoas de forma tão simples e verdadeira... cê tem que escrever um livro, que nem a mulher do sex and the city.

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  4. Reminiscências tomam conta de mim... O Texto é bom: ambientação coerente, tormento psicológico interessante, parênteses para descrever cenas, caracterização das personagens, o espaço, a utilização de variante linguística adequada... Legal!

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