quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Dos meus Cem Anos - II*

Nasci bibelô no verão de mil novecentos e oitenta e dois, na Boca do Lixo, como observei antes; e, excetuando escola, arroz aos pombos no Pateo do Collegio, incursões ao Cemitério Israelita e viagem anual ao Rio de Janeiro, fui criança de apartamento, por razões aparentemente óbvias.
No ano anterior ao meu nascimento, faleceu Victorio Albala, meu avô materno, vítima de complicação gastrintestinal sobre a qual não faço idéia.
Consta que, em virtude do episódio, minha avó perdera sua vocação à vida, recebendo com indiferença a notícia de que uma de suas gêmeas, casada à revelia com militante comunista pé-rapado, engravidara.
Não sei bem como aconteceu de enamorarmo-nos uma doutra. Os familiares mais dados ao romance melífluo falam largamente em amor à primeira vista. De minha parte, acredito mais noutra composição, desconhecida ou soterrada por artimanha subconsciente.
Tendo Freud abotoado o paletó, explico eu.
Na cidade de Alexandria, Fortunata fora, entre seis irmãos e uma irmã, mulher mais velha, por cujo pai, senão nutria, expressava predileção.
Acontece que, dada à adivinhação, a avó menina leu dentro duma xícara de café turco a morte do velho escrita em pó, e o ocaso, implacável feito seu primo destino, foi responsável por dar cabo ao homem no dia seguinte.
Em decorrência do trauma, sujeito algum, excetuando uma pessoa só, a ouviu falar grego, sua língua paterna, outra vez.
Durante a semana, fardada a freqüentar o banco escolar, dormi sempre em meu quarto, a uma quadra da casa de minha avó. Ao cair da tarde de sexta-feira, entretanto, meu espaço narrativo era lá.
Rua Frederico Alvarenga, número tal, apartamento tal. Não guardei o endereço da casa dos meus pais, na qual eu, efetivamente, morava, e não digo o número de telefone da Dona Fortunata porque é, ainda, senha de acesso a minhas contas bancárias.
Importa contar que nunca senti inveja das outras crianças, as quais, à rua, tinham taco, peteca, futebol e pique-esconde.

Boa memória não figura entre minhas maiores virtudes, mas lembro que a casa da Nona era mágica. E ela falava grego dormindo.

*(escrito sob contribuição valiosa de Esther Michelina Albala Habif)

Um comentário:

  1. "Nasci bibelô..." - isso foi genial. Adorei esse começo, o melhor começo de post auto-biográfico de todos os tempos!

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