terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Dos meus Cem Anos - I

Cresci numa residência situada à Rua Frederico Alvarenga, no centro de São Paulo, tendo como vizinhas a Secretaria da Fazenda, cujo prédio abriga hoje o Poupatempo Sé, e a casa da minha avó.
Os edifícios antigos, que contam lá hoje seus mais de cinqüenta anos de construção, têm unidades residenciais amplas, como era o caso daquele no qual morava a Nona.
Fortunata Cantoni Albala era o nome de minha avó materna. Nascera no Egito, filha de imigrantes gregos, e assistira à emigração de seus irmãos: Oriente Médio, Europa, América do Sul.
Casada, dirigiu-se à Itália com marido e filha primogênita a tiracolo, quando a perseguição aos judeus tornou-se, no Egito, caso institucional.
Em Livorno, com já três filhas e marido, jornalista desempregado, recebeu da irmã, Estela, carta saudosa relatando as maravilhas de Pindorama. Que aqui não se morre de fome, há banana à penca. Que a baía da Guanabara parece arcada dentária completinha. Que São Paulo abriga toda sorte de gente, da egípcia à japonesa.
À recessão italiana, dessa maneira, somou-se a promessa braziliana. Razões suficientes para que a Nona embarcasse, munida de esposo, menina mais velha e as gêmeas, sem primeiro ano completo ainda, a terceira classe dum navio rumo a Santos.
Hoje, aos vinte e seis anos, não constituí imagem sólida do inferno pelo qual essa gente passou durante aqueles meses.
Parte da responsabilidade por minha deficiência imaginativa, entretanto, é da avó que me embalava o sono desafinando graciosamente uns versinhos assim:

Partirà, la nave partirà
Dove arriverà? Questo non si sa
Sarà come l’Arca di Noè
Il cane, il gatto, io e te *



*(L'Arca di Noè é uma composição de Sergio Endrigo. É possível escutá-la aqui)

Um comentário:

  1. Lindo, simplesmente lindo post!
    Li e reli. E é claro, procurei a rua alvarenga no googlemaps...
    É real? Conto?
    Pela primeira vez cotemplei um texto narrativo seu tão objetivo, despojado e belo. Gostaria de conseguir escrever como vc qdo crescer!

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