quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Festa da Democracia*

Moro num edifício de dezesseis andares. Do primeiro ao décimo quinto, temos oito apartamentos de três e dois dormitórios em cada piso. As coberturas ficam no décimo sexto, são apenas quatro e, portanto, maiores que os outros apartamentos do prédio.
A taxa de condomínio - o que representa, financeiramente, metade do meu salário - é proporcional à metragem da propriedade. Se o morador duma unidade residencial de dois ou três dormitórios pagasse o mesmo valor que paga o proprietário duma cobertura, obviamente trataria de arranjar um apartamento desses no topo da edificação.
Vivemos aqui, até o ano retrasado, sob a administração dum síndico desonesto, mas, embora tivéssemos ciência de sua desonestidade, não existia maneira de comprová-la.
O edifício andava sujo, sistema hidráulico e elétrico no bico do corvo, elevadores em péssimo estado, funcionários displicentes, portaria feia.
Nada poderíamos fazer. Uns, porque camaradas ou devedores de favores ao administrador; outros, porque trabalhadores sem tempo para fiscalização. O resto, para evitar dor de cabeça com porcaria, fé na providência divina, no ócio criativo ou pura preguiça.
Todos nós, deste modo, recostávamos nossas cabeças aos nossos travesseiros e dormíamos com este barulho.
Muitos condôminos cogitaram a possibilidade da venda do apartamento, mas nossas casas andavam completamente desvalorizadas devido ao estado do prédio e ao alto índice de inadimplência – já que há sempre gente que vê a maracutaia alheia como razão justa de se esquivar do próprio dever e compromisso.
Se já padecíamos com toda miséria da torre, nosso síndico trambiqueiro, a falta de quem fiscalizasse sua administração e pudesse comprovar sua corrupção, pagamos também esse pato pelos proprietários inadimplentes, com rateios e aumento da taxa condominial.
Àquele último ano de administração, um grupo de moradores, quase ensurdecido, já não conseguia mais fechar os olhos à noite.
Constituído por trabalhadores assalariados, aposentados, profissionais liberais, donas de casa; homens e mulheres; hétero e homossexuais; brancos, pretos e orientais; pós-graduados e pré-silábicos; jovens e idosos; cristãos, candomblistas, judeus, agnósticos, budistas e ateus, este grupo tomou a decisão de usar parte de seus dias, noites ou madrugadas, inclusive aos finais de semana, fiscalizando as contas do prédio.
Contra a antiga administração, conseguiram reunir provas contundentes, denunciaram-na e processaram o sujeito responsável, que fugiu durante a madrugada e do qual o condomínio está prestes a tomar, judicialmente, o apartamento para quitar suas dívidas.
Entre todas essas pessoas que trabalharam pelo lugar onde moram, estava também quem foi eleito e ocupa, atualmente, o cargo de síndico – função que inclui administração da peça orçamentária, contratação, demissão, compra, orientação, cobrança, advertência, sobe e desce, paciência com morador chato - e recebe, por isso, salário equivalente a uma cota condominial.
Na assembléia mensal, pela qual toda proposta de gasto e benfeitoria passa, é composto espontaneamente o conselho de moradores, que colabora com a administração na fiscalização das contas.
O prédio anda limpo e organizado, manutenção em dia, elevadores em ordem, funcionários bem orientados, portaria reformada...
Só falta mesmo é Dona Laura, nossa vizinha de porta bem velhinha que perdeu o marido - sujeito formidável, responsável pela organização do grupo que viria a pôr nossas contas nos eixos - e, apesar de ter decepado parte de seu polegar esquerdo em acidente de trabalho na indústria têxtil onde foi operária dos quinze aos cinqüenta e poucos anos, teve de ir morar na casa da filha porque não conseguia mais pagar condomínio e comprar comida com seus quatrocentos mangos de aposentadoria.
*(valores do serviço, couvert, consumação, cadeiras, mesas, guardanapos, louças, talheres, iluminação e música cobrados à parte)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Marchinha cinzenta

É vento de sal
Vontade de céu
O fusco de sol

[Boca do tubo]

De giro abissal
Rasgado corcel
Desfaz-se lençol

[Surdo gemido]

No corpo, ter sal
Na boca, ter céu
Nos olhos, tersol

[Final da euforia]

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Extrato*

Há rumores de que a Rede Pública Municipal de Ensino na qual eu trabalho anda em vias de estabelecer uma dita “parceria” com a Fundação Bradesco.
O projeto, segundo a boca miúda, deve ser desenvolvido na Primeira Série do Primeiro Ciclo de Ensino Fundamental Regular e prevê utilização de material, capacitação de profissionais e avaliação de resultados desenvolvidas pela Fundação Bancária.
Sou professora de língua portuguesa no Segundo Ciclo da EJA - Educação de Jovens e Adultos, supletivo correspondente ao período da quinta à oitava série no Ensino Regular, e não parece que material, capacitação ou avaliação da Fundação do Banco Bradesco cheguem a esta modalidade naquele município, mas, como educadora, entendo que eu deva arcar, tanto quanto qualquer outro profissional de ensino, cidadão brasileiro ou terráqueo, com os prejuízos da instauração do termo que Paulo Freire, visionário festejado também pelos mentores da associação Banco-Escola supracitada, chamou de Educação Bancária.
Dessa espécie de enredamento das esferas do Ensino Público e da Empresa Privada Bancária decorrem muitas e óbvias constatações sobre os meandros funestos pelos quais a Educação caminha e, ao que tudo indica, continuará caminhando por muitos anos.
Entre a multiplicidade de constatação, escolho aqui a mais ridiculamente óbvia, que recai, em princípio, sobre o educador (e, de maneira alguma, indico este sujeito como vítima da situação. O enxergo, antes, parte responsável pelo sucateamento seu, escolar e social, enquanto figura melindrosa e reticente frente a imposições com as quais não há concordância), o cerceamento de seu maior direito, dever e necessidade enquanto ser humano, trabalhador e mediador no processo de aprendizagem do educando: PENSAR.
Dos bons cursos, da boa literatura e teoria, dos próprios discursos de nossos dirigentes educacionais e, sobretudo, da experiência na sala de aula e fora dela, depreendemos a importância de PENSAR a prática pedagógica.
PENSAR cabe essencialmente ao professor e é fundamental para que planeje e estruture sua aula, pesquise e desenvolva materiais pertinentes e provoque, em conseqüência de sua prática, o PENSAR no educando.
Entra aí o material fornecido pela Fundação do Banco Bradesco, naquele método apostilado conhecido nos cursos pré-vestibulares.
Elaborado pela competente equipe pedagógica do Banco, o material pronto se presta, então, a bússola no oceano pedagógico e já não somos mais náufragos: a turma veleja ao norte, definido pelo braço da responsabilidade social dum Banco. A mesma equipe cuida da capacitação dos professores e avaliação, tanto deles quanto dos alunos.
O educador torna-se, então, nosso intermediário entre apostila e jovem aprendiz. O educando, poupança na qual inculcamos tudo quanto definiu a competente equipe bancária, digo, pedagógica do Bradesco.
Vento em popa e mar de azeite: os resultados das avaliações são ótimos. Ortografia, coerência. Agora, a título de verificação ranheta, solicite ao aluno Nota Dez que explique por que sua família corre o risco de perder sua casa construída em área de manancial. Ih, não deu? Então peça ao professor para responder à mesma pergunta. Chi...
E deu no jornal: o mercado de trabalho padece com a falta de mão de obra especializada. Deu no jornal: paralisação na educação por reajuste salarial. Deu no jornal: governador chama professoras de mal amadas.
O não PENSAR empobrece a escola, esvazia o sentido, desmotiva o educando, desqualifica o educador, enriquece o Banqueiro e consolida a Educação Bancária.
Tive conta no Bradesco. Os juros são altos.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Estampa

Dentro dos teus braços
Sob a chuva de verão
Sempre é carnaval

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

À flor da pele

Abrem-se os botões
Ao toque primaveril
Os seios florescem

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Ensaio sobre o Tempo*

Criança pequena
não quer tabuada:

No oráculo vítreo
a Morte é um numérico
múltiplo de cinco



*(mote sugerido pela Tertúlia Virtual)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Por que eu amo O Pianista


“Eu não sou judeu.
Eu não sou polonês.

Eu sou Pianista.”

Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, a família Szpilman é deportada da Polônia e o único membro a escapar, acidentalmente, do trem que a levaria a um campo de concentração é Wladyslaw, interpretado magistralmente por Adrien Brody, nossa protagonista: O Pianista.
Enclausurado no Gueto de Varsóvia, doente e faminto, o artista passa a levar uma vida errante entre miséria e caos.
O roteiro de R. Harwood, adaptado a partir da obra biográfica homônima do pianista Wladyslaw Szpilman, parte do momento em que, tendo a Alemanha nazista invadido a Polônia, passa a ser decretada uma série de leis de caráter anti-semita.
Ainda que os decretos sejam, de fato, levados à prática, a família Szpilman, abastada e culta, encabeçada pelo pai, acredita que a guerra não durará muito tempo e que a Alemanha há de ser, em breve, derrotada. Desta maneira, submete-se passivamente à humilhação.
A humilhação, aliás, é um dos elementos que parecem nortear todo O Pianista de Roman Polanski. Ela tem início com decretos ridiculamente cretinos, como a proibição aos judeus de andarem nas calçadas de Varsóvia, chegando ao ponto da cena na qual, à frente duma família, à mesa do jantar, oficiais da SS defenestram um senhor numa cadeira de rodas para evitar o trabalho de carregarem-no escada abaixo rumo à morte.
O auge da humilhação, entretanto, não se apresenta no filme por meio destas nuances, que acabam compondo o terrível panorama no qual judeus e poloneses, especificamente, estavam inseridos na Polônia tomada pela Alemanha Nazista, mas na universalização dela, ao cercear o direito humano.
Poucas cenas cinematográficas têm o efeito daquela na qual Szpilman toca, sem tocar, o piano do apartamento onde se esconde.
Ponto fundamental no decorrer do filme é a imagem de Wladyslaw. A personagem, apresentada, em princípio, como sujeito requintado, músico erudito, passa a sofrer grande metamorfose, tornando-se figura esquálida, inerte, animalizada. A humilhação aqui é o que leva à brutalização do homem. Como é possível andar sorrateiramente numa rua tomada por cadáveres ou procurar comida enfiando a cabeça nas latrinas, entre excreção humana? Por outro lado, com que mais se impressionar, afinal, depois de ter sua família conduzida à morte?
Mais interessante ainda é estabelecer um cotejo entre a transformação de Wladyslaw e a transformação de Varsóvia ao longo da obra. Ao passo em que o pianista emagrece, empalidece e é transformado em objeto passivo, os prédios de Varsóvia são colocados abaixo, a cidade fica em ruínas e perde a cor.
Szpilman perde sua família, passa a subsistir como foragido, tem fome e é impedido de exercer sua arte. Ainda assim, ele não demonstra rancor nas três oportunidades em que encontra oficiais nazistas; a primeira, ao ser retirado do trem, e as outras duas são encontros com o oficial que pede para que ele toque piano e implora, já preso, ao último encontro, para Szpilman lembrar-se de ajudá-lo.
O pianista não só não demonstra rancor, mas também se apresenta ao longo do filme como personagem completamente passiva. Ele é retirado do trem, a ele é sugerido que permaneça escondido no apartamento de amigos, é alimentado no apartamento e espera, ao final da guerra, ser encontrado pelos soviéticos.
Mais do que um homem traumatizado pela humilhação e pela perda da família, Wladyslaw Szpilman se presta aqui a símbolo. Polansky poderia ter trazido às telas a história dum ferreiro, bancário, professor ou relojoeiro. Judeu, polonês, cristão ou palestino. Trouxe O Pianista.
O piano, a música e a arte foram as nuances que levaram aquela questão específica, circunscrita pela guerra, à expansão, tomando caráter universal. Ali, a arte é o que faz valer o caráter humano de Wladyslaw. Ele não representa mais um judeu ou um polonês. Segundo a própria personagem, ele é pianista.
É a Arte quem resiste à cidade demolida e ao corpo, que perece gradualmente.
O Pianista, desta maneira, não me parece um filme específico sobre a questão do judeu polonês no Holocausto, mas relativo àquele inominável demasiadamente humano quê.
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Título: Le Pianiste
Gênero: Drama
Duração: 148 minutos
Lançamento: 2002
Direção: Roman Polanski
Roteiro: Ronald Harwood
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P.S.: Segunda-feira, dia 16, minha querida amiga Deborah enviou esta notícia curiosa relacionada ao tema.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Batalha naval*

A toda sorte de garrafais
letras embriagadamente
biquinscritas em frágeis cascos
de papel
Náufragos seríamos
Éramos
Estávamos
De Lapa
De Rio
De Fato
De Porre
De Tudo
(e de sina também).

Não sou porto-seguro,
Sou pirata caolho.
Não és terra à vista,

és poeta, maneta.


*(jan./2003)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Duma cerveja onírica em Münch

Esvaiu-se todo canto
no cantar tempo sombrio

Qualquer dia te escrevo.


A felicidade extermina,
diariamente, seis milhões
de novos poemas.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Lição de Guiar - apontamento

À noite verificamos
fundamental a tração
na oscilação entre o
Vale Florido e o Pico
Rochoso - Dedo de Deus.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Lição de Guiar

Da rodovia cervical ao quebra-mola
todos teus caminhos convergem à acentuada
rampa.

Que a marcha seja lenta e ininterrupta
da planície até o curvo pico,
cume.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Memória do Cárcere

Éramos, enfim, solitários. E enganávamos a nós mesmos, procurando acreditar - por auto-sugestão e implante de provas falsas - que fôssemos os criminosos. A sentença, à qual nos submetemos - porque, antes, réus conscientes - foi comungar uma vida plástica, cheia de tevê, jantar e conta de telefone.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Princesa não ronca

Na história das fadas
O beijo é convite

À emersão do sono

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Canto Oceânico

(a toda criança esperta e adulto que gosta do mar)

Ondulantes e depois, era uma vez de Ilê Ifé, lá na África, um peixe-agulha com ascendência real. Seu nome, dito e desdito, perdeu-se entre nação, onda, continente e cor tanta que a gente, hoje, só a custa de muito esforço chega perto de descobrir. Tristeza porque, como todo mundo sabe, esse tipo de peixe só se aproxima daquele que diz seu nome de verdade.
Sua avó era Olokun, uma velhinha bonita com rosto meio molenga e sorriso fácil. No lugar dos dentes, tinha eram pérolas, daquelas mais amarelas, e uma Estrela do Mar vivinha nos cabelos brancos.
Dona Olô morava num coral cor de rosa e não havia Água-Viva alguma que se metesse a boba de queimá-la porque tudo o que se mexia e bestava parado dentro d’água, da Cachalote ao Pepino, respeitava a mulher. Ela era a Rainha do Mar.
Muito ser do oceano, incluindo a Medusa, que, apesar do nome, às vezes é homem, e o Cavalo-Marinho, que nem homem nem mulher é, era filho de Olokum, mas a Princesa mais famosa desde aquela época é Iemanjá.
Ieiê, mãe de todos os peixes do mundo, era a moça mais linda na Terra, na Água e na Areia da Praia. É certo que tinha rabo de peixe, mas gostava mesmo de vestir uma saia bem rodada, fiada com Alga e carapaça de Mexilhão.
Tinha a pele bem pretinha e uns cabelos muito compridos enfeitados com conchas pequenas de Ostra abrindo e fechando. Além disso, dizem que era cantora e tinha voz capaz de encantar até marinheiro barbudo e bravo com tatuagem de âncora no braço.
De pés juntinhos, na minha última estada em Ilha Grande, um barqueiro sabido vindo lá da Bahia jurou que Iemanjá ainda está viva, mora no Brasil e a gente, em dia ensolarado, fazendo bastante silêncio e prestando muita atenção, pode escutar, perto do mar, a Princesa cantar o nome perdido do seu filho Peixe-Agulha.
Se é verdade, não sei. É bom, de qualquer jeito, prestar atenção em tudo quanto é canto de maré.