terça-feira, 17 de março de 2009

Hipocondria

Ingênua fé na coerência - e numa verdade incorruptível, decorrente dela - me convenceu, desde cedo, a erguer altares e ungir correntes, teorias, partidos e gentes. E - penso agora - é provável que ingenuidade e comodismo floresçam na mesma árvore.
Certas decepções, entre as quais algumas constam desta Pobre Rima, tanto na esfera profissional quanto na político-partidária, foram e têm sido imprescindíveis para a operação particular diária à qual tenho dado seqüência aqui dentro de mim.
Muita pessoa pela qual nutro estima tornou e torna-se, com freqüência, paradigma ao qual devi fidelidade absoluta.
Dentro do absoluto, não há relativismo: se X trabalha pelo bem comum, já não me importa que faça uso de subterfúgios questionáveis. X tem meu apoio incondicional. Se Y tem sólida formação e posicionamento geral com o qual concordo, tem sempre razão. Y é modelo de conduta e opinião.
Parece, hoje, que a gente tem mesmo de ser outro antes de ser eu.
E tudo dói.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Das três horas de Benjamin Button

Sábado, impelida por meu instinto social – expressão equivalente a coerção –, fui, finalmente, assistir ao tal Curioso caso de Benjamin Button.
A longa fila à espera da compra de entrada no Cinemark do Shopping Villa-Lobos, a mim, inclinada a desistir antes de anuir, era razão suficiente para abortar a operação.
Entretanto, na boca do caixa, ao solicitar o bilhete de meia entrada, a atendente, em tom enfático de quem avisa amigo é, ratificou a duração de três horas da fita. Em virtude da razão elevada ao cubo, olhei - em tentativa dum último apelo do condenado ao algoz - a pessoa pela qual estava acompanhada. Não teve jeito.
Enquanto caía a iluminação e a gente toda murmurava, lembrei do comentário publicado pelo A. em seu Meio dedo de prosa a respeito da excessiva extensão do filme, e, procurando sossegar minha alma, recomendei a mim mesma que, se o filme fosse chato, dormisse e pronto.
Imagino desnecessário o relato de impressões e juízo pessoal sobre o Benjamin Button porque a simples descrição do que aconteceu comigo ali, sentada ao centro da sala de cinema número 3, parece bom resumo: do quinto minuto após o início do filme até o quinto minuto anterior ao letreiro final, chorei. Chorei copiosamente de comoção doída, chorei de reconhecimento, chorei de identificação, chorei de tristeza, chorei de alegria, chorei de mais não sei quê. Chorei quando o filme acabou.
Guardo para mim sempre a máxima do “quem fala demais dá bom dia a cavalo”, de modos que, em ocasiões nas quais não entendo do assunto, adoto a tática do silêncio.
Confesso que não li o conto de Scott Fitzgerald, não entendo de narrativa e estética fílmica, nunca dei a mínima para elementos como fotografia e maquiagem, o nome David Fincher era verbete sem descrição na minha enciclopédia mnemônica e, sinceramente, eu só lembrava da Julia Ormond chifrando o Arthur com o Lancelot na Tela Quente. A despeito disso e daquilo, discordo de meu querido A., embora tenha certeza de que ele, ao contrário de mim, entende de cinema, quanto ao filme de Fincher.
De tempos em tempos, corre uma mensagem eletrônica com um poema de autoria atribuída a Charles Chaplin, no qual está escrito, dum jeito bem bonito, que a vida da gente deveria ser ao contrário: tínhamos de nascer idosos reumáticos, atingir a maturidade com o corpo bonito, trocar rugas por sabedoria, morrer na doçura pueril. E é justamente isto o que acontece com Benjamin.
A protagonista do Curioso caso nasce velha e, aos oitenta anos, falece bebê de colo. Apesar de toda circunstância incomum – e, talvez, justamente em virtude de toda circunstância incomum -, Benjamin Button é a mais comum e humana protagonista cinematográfica à qual já assisti.
Aos cinco e aos setenta e cinco anos, Benjamin gosta de ouvir história. Feito eu e você, durante a vida, ele se apaixona e é amado, mas nem sempre; ele se aventura e se resguarda também; ele tem medo nalgumas ocasiões e se joga noutras; erra e acerta; magoa e é ferido; chora e ri; passa por momentos de euforia total e tédio completo; aprende e ensina. Tudo tem seu tempo na vida de Button.
Cada coisa, ali dentro da sala, tem seu tempo: oitenta anos na vida de Benjamin Button duram três horas. Uma filha conhece verdadeiramente sua mãe em três horas. Alguém descobre quem é num período de três horas. A leitura dum diário leva três horas. A agonia no leito de morte é de três horas. A chegada dum furacão demora três horas. A moça da poltrona vizinha toma seu refrigerante em três horas. Uns olhos permanecem grudados na tela por três horas. Eu chorei até desidratar durante três horas.
Do meio-dia às nove da manhã, em relógio no qual os ponteiros correm em sentido anti-horário, são três horas. Do meio-dia às três da tarde, marcadas por ponteiros em sentido horário, perfaz-se três horas, de qualquer maneira.
Três horas tomando cerveja em dia quente com amigos queridos são poucas. Três horas entristecidas no velório dum camarada estimado são muitas.
Não acho que qualquer referência temporal, das recorrentes expressões como “boa noite” ou “tudo tem seu tempo” à caracterização das personagens, tenha sido mera coincidência ali.
A narrativa fantástica do Curioso caso de Benjamin Button leva três horas para contar, de muito jeito curioso, a história do tempo que o tempo tem. A extensão do filme, portanto, é tão necessária quanto consoante plosiva em poema sobre bomba.
Contei, anteriormente, sobre meu pranto ali no cinema e não menti, mas omiti. A verdade é que chorei mais depois, mas, dessa vez, por outra razão: fiquei pensando no que tenho feito eu de todas as minhas três horas.
Acho que nasci velha.
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Título: The Curious Case of Benjamin Button
Gênero: Drama/Fantasia/Romance
Duração: 166 minutos
Lançamento: 2008
Direção: David Fincher
Roteiro: Eric Roth
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quinta-feira, 12 de março de 2009

E digo mais, compadre I

Era como, assim como podia também ser, outra qualquer. Mas, veja bem, mulher outra, que com homem, todo o mundo sabe, sempre tudo diferente dá. Mulher que é bicho pronto e dado, zápite-zúpite, à arrebatação de fazer perder arreio e sair mundo à delícia de mula destrambelhada, e não é?
Pois que então foi tudo às causas disso mesmo. Essa natureza de mulher, causadora de desgraça grande ali. E nem se diz pelas bandas que fosse Tadinha a canhota, se bem que tinha idéia torta mesmo, mas isso, enfim, como eu disse, é da e pra laia delas. A diaba não tinha teres com o Canho nenhum, não.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Da Primeira

Pinta as unhas dos pés com esmalte vermelho encarnado. Nas mãos, dedos longos vestem cores sóbrias e aliança. Noivou e casou sem delongas, em festa de arromba. Prefere as bebidinhas adocicadas. Acarinha palavra, dizendo devagarinho tudo, articuladamente. Acompanha o marido ao estádio. Tem olhos apaixonados, feito míope sem as lentes. Dum talento gastronômico indizível. Seus cabelos são pretos, compridos, sedosos. Maria Bethânia é sua maior comoção. Liga o ar condicionado e, debaixo da macia coberta, dorme bailarina. Quer filhos agora.

terça-feira, 10 de março de 2009

Da Quinta

É ruiva e lê Freud. Não duns cabelos de fogo, mas avermelhados. Interessadíssima em política externa, bebe feito poucas. Não tem animal algum de estimação, mas há sempre flores na casa de paredes brancas. Amarelas. Foi à África Subsaariana a passeio com ex namorado. Gosta de gente. Cansa de gente. São bons seus amigos. Aperta os olhos castanhos dum jeito sincero ao sorrir. Branca, sem vestígio de biquíni. Fode de todos os jeitos e sabe chupar. Fuma eventualmente, tem predileção por charutos e uísques maturados. Estéril.

segunda-feira, 9 de março de 2009

10 dias que abalaram o Mundo

Depois da Net ter proporcionado alguns dias na Sibéria a esta que vos escreve, a Pobre Rima retorna hoje ao trabalho.
Lembranças de Lara a Jivago.